terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Um sonho


 Maria Jorge


Ontem fui para a cama um pouco mais cedo que o habitual. Talvez contagiada pelo tempo chuvoso e frio, estava um tanto ou quanto taciturna e não me apetecia ver TV.
De repente acordei. Olhei para o relógio da mesinha de cabeceira. Marcava três e um quarto da madrugada. Já tinha dormido tanto, sono já não tinha e o que iria fazer até de manhã? Sentei-me e, bem acordada, comecei a sonhar, e regressei à minha meninice.
Eletricidade, gás, água canalizada, novas tecnologias, partidos políticos, democracia, emigração massiva dos nossos quadros técnicos, de famílias completas, de jovens e menos jovens, fome, desemprego? Alguém sabia o que isso era?
Apanhar azedas da terra e comer; subir às árvores e, com uma ponta da saia, limpar a fruta e comê-la, quantas vezes, ainda verde; jogar à macaca, à cabra-cega, ao calote e tantos outros jogos; andar na bicicleta dos crescidos; meter-me dentro das medas de palha com os meus amigos e brincar aos senhores doutores; ir para as marinhas com o meu avô e, enquanto ele apanhava o junco, eu apanhava flores; rebolar-me naquele areal imenso enquanto a minha mãe lavava, corava com anil e secava a roupa, para, ao fim do dia, já cansadas, voltarmos; ela com uma mão segurava a roupa à cabeça e com a outra um pote de barro com água fresquinha; eu, imitando as pessoas crescidas quando vinham das feiras, metendo a mala da escola e os sapatos à cabeça, caminhava pela regueira (certo e sabido que a seguir ficava doente); apanhar peixes-sapos, metê-los na mão e esperar que saltassem para dentro de água novamente; ir para o rio lavar as tripas do porco para fazer chouriços; arear a máquina de petróleo; aos serões fazer grandes rolos de tiras de restos de tecidos para depois serem levados pelas senhoras de Pardilhó para tecerem mantas que serviam para fazer peso nas camas e nos aquecerem no inverno; levar tareias da minha mãe pela minha irreverência e traquinice.
Queria rapidamente crescer. Queria rapidamente ser mulher.
Era feliz e não sabia!






















3 comentários:

  1. Voltar a criança e saber o que sabemos hoje? Assim se costuma dizer, mas não seria o melhor. A beleza de uma criança é a sua ingenuidade. À medida que crescemos perdemo-la. Coitados dos adultos que não tenham saudades do tempo de criança!

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  2. Como é bom recordar. Não imaginas como fico feliz quando dou por mim a recordar quando era menina. Quem me dera...
    Gostei muito do teu texto e lembro perfeitamente o sítio onde tiraste a fotografia.

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  3. Gostei muito deste regresso à infância e da forma poética como descreves a vida simples e singela como se vivia há pouco tempo. Era bom que esta publicação fosse lida por muitos jovens para lhes dar oportunidade de vivenciarem, em testemunho, a vida dos pais e dos avós.
    Continua, Maria, estou a ver que esta nossa experiência também te está a dar muito gozo...

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