Dores Topete
Olá Lígia
Há tanto tempo que não te
escrevo, aliás, parece que a escrita está cada vez mais em desuso, o nosso último
contacto foi pelo telefone e já lá vão uns meses. Espero que tu e a tua família
continuem bem.
Hoje quero escrever-te porque
sinto que ao fazê-lo, vou poder extravasar tudo o que me vai na alma, e só
contigo o posso fazer, não só porque és a minha melhor amiga, mas também porque
sempre me aconselhaste bem, eu é que infelizmente nem sempre te dei ouvidos.
Por isso, agora, que a minha vida
vai levar uma reviravolta, és tu a pessoa a quem quero contar, porque sempre
viste o que eu nunca quis ver e, por isso, sofri e paguei caro a minha
cegueira.
Estou a recordar a minha vida, a
infância maravilhosa que tive, filha e neta única, vivi sempre rodeada de amor
e carinho, tive muitos amigos, brinquei, estudei e namorei, e tu foste a amiga
que me acompanhou desde sempre.
Como tudo na vida tem um fim, a
minha felicidade acabou, precisamente quando acreditei que iria ser completa. Enamorei-me da pessoa errada,
acabei grávida e viúva sem sequer ter casado. O Ernesto foi na minha vida um
pesadelo, não só porque foi um ser humano mal formado, que me enganou, me
engravidou, me mentiu, mas também porque não aceitou a minha gravidez, e acabou
por morrer vítima de um acidente em consequência das noitadas tresloucadas que
fazia com os amigos, antes mesmo de ter tempo para reconhecer o filho.
Não fora todo o sofrimento que
passei, e eu pensaria que tudo isto não era senão um romance trágico a vender
barato em qualquer quiosque.Tu, melhor que ninguém, sabes o
que passei para criar este filho. Na altura era difícil ser mãe solteira, com
uns pais já velhos, sem entenderem muito bem a vergonha da situação.
Dediquei-me de alma e coração ao
meu filho João, trabalhei muito para que nada lhe faltasse. Apesar dos
conselhos que me davas para continuar a vida, casar, ser feliz, eu nunca te
ouvi. Como me arrependo agora destes anos de solidão, de sofrimento, de sentir
que estava incompleta, desasada.Nos primeiros anos o João
preenchia a minha vida, ele achava que eu era dele, e por isso tinha que estar
sempre disponível. Não me importei, vivíamos um para o outro.
Entretanto ele foi para o liceu e
começou a ser mais independente, mas egoisticamente, ia cortando as
possibilidades que eu tinha de sair com os meus colegas e amigos. Eu, contrariando
a tua vontade e opinião, ia-me deixando ficar, até que lhe chamaste a atenção
para o seu egoísmo e ele não gostou. Eu para evitar discussões, até contigo
deixei de estar mais vezes.
Como são cegas as mães… como pude
eu, que sempre me acreditei inteligente, deixar que o meu filho me manipulasse
desta forma?O tempo foi passando e eu fui
ficando cada vez mais só, os meus amigos e colegas criaram as suas próprias
famílias, os seus grupos de amigos, de que eu por culpa própria não fazia
parte.O João foi para a universidade,
saía todas as noites, eu estava com ele ao jantar e não era sempre. Comecei a
queixar-me de que estava muito só, e para meu espanto ele disse-me “Tenho a
minha vida e os meus amigos e aborrece-me que estejas sempre a queixar-te, nem
tenho por vezes vontade de vir para casa por saber que estás à minha espera,
sentada, como se fosse ponto assente que eu tenha que vir”.
Por muitos anos que viva, minha
boa amiga, não posso nunca esquecer esse momento. O meu filho, que criei
sozinha, que exigiu de mim uma atenção permanente, acusa-me agora, ao fim de
vinte anos, de lhe estar a ensombrar a vida com a minha presença.Quando lhe respondi que estava
só, sem amigos, porque tinha vivido com ele e para ele, porque fora assim que
me pedira, respondeu-me que então agora estava chegado o momento de começar a
sair com os meus colegas porque ele tinha também a sua vida.
Lígia, há sofrimentos que não se
conseguem exprimir por palavras nem pela escrita, por isso só te posso dizer
que nada do que passei na vida se iguala ao sofrimento que senti então. Recolhi-me um pouco mais,
isolei-me mais, nem a ti, minha boa amiga, eu contei o que se estava a passar.Tornei-me uma pessoa pacata sem
interesse fosse pelo que fosse, a única saída a que me permiti foi a ida ao
ginásio, que frequentava três vezes por semana por razões de saúde.
Os meus colegas de ginásio
gostavam de mim, segundo parece, o meu ar ausente e a minha aparência
tornavam-me uma quarentona interessante, era pelo menos o que diziam os
colegas.Estavam sempre a convidar-me para
os lanches e os jantares de grupo do ginásio, eu estupidamente, e até por não
estar habituada a sair, ia recusando.
O João apareceu-me em casa numa
noite com a namorada para que a conhecesse e para me comunicar que se ia casar.
Estava formado, tinha emprego e por isso ia constituir família.Concordei, dei-lhes os parabéns e
quando se foram embora chorei, chorei toda a noite, porque conclui que já não
fazia parte da vida do meu filho. Agora sim, ia ficar até sem as migalhas da
sua presença.
É triste Lígia, é aterrador, é um
misto de raiva, dor, de uma sensação de vazio, de incapacidade para
compreender.Enfim, casaram e eu continuei a
minha vida, agora aposentada antecipadamente porque a empresa onde trabalhava,
fechou.
As minhas idas ao ginásio
passaram a ser os melhores momentos dos meus dias. Acabei por me deixar
convencer a ir aos lanches e aos jantares e a minha vida tomou outro ânimo. Já
nem parecia a mesma, redescobri o prazer de viver e estar em grupo.
A isso não era alheia a presença
do Zé Ribeiro, um viúvo de sessenta anos cheio de alegria, que teimava em me
fazer rir com as suas brincadeiras e atenções.É isso, amiga, é mesmo o que
estás a pensar. Se eu bem te conheço, pensas “Finalmente a minha amiga Rafaela
decidiu-se a ser feliz”.É bem verdade, pela primeira vez
desde os meus vinte anos sinto-me solta, alegre e aprendi a gostar de ser
feliz.
Mas, há sempre um mas, a minha vida
não pode ser simples como a das pessoas ditas comuns. O meu João telefonou-me a
dizer que vinha cá a casa para falar comigo.Veio com a Teresa (a mulher)
dizer-me que iam ter um bebé e que esperavam que durante o dia, eu ficasse com
ele por ser mais saudável e também mais prático, não só por pouparem o dinheiro
do infantário, mas também porque não teriam que cumprir os horários de entrada
e saída.
Lígia, fiquei felicíssima por ir
ter um neto, é uma alegria intensa. Agradeci-lhes pela novidade, mas disse-lhes
que tinha finalmente começado a viver, tinha passado quase trinta anos a viver
em função do meu filho, sendo que uma boa parte deles tinha sido a sofrer uma
solidão sem limites. Agora, tinha feito finalmente amigos, tinha criado outro
tipo de vida para mim, onde a solidão já não se fazia sentir tanto e tencionava
não abdicar desta nova oportunidade que Deus e também o acaso tinham criado para mim.Aliás, tinha feito o que o meu
filho me tinha dito quando estava na universidade, tinha tentado e estava a
conseguir ter uma vida própria.
É indescritível a cara do meu
filho, foi como se não houvesse ar que lhe entrasse nos pulmões. Quando
finalmente conseguiu falar, foi para me dizer que não entendia como podia estar
a negar a presença do meu primeiro neto. Que lamentava que o filho não tivesse
avó.Respondi-lhe que estava muito
feliz por ir ser avó e gostaria muito de ter o meu neto comigo, mas não em
situação permanente porque eu também, tal como eles, tinha uma vida e
disse-lhes mais: “Não compreendo a tua atitude João, quando tu mesmo me
disseste que eu nunca deveria ter-te dado ouvidos e ficado sozinha. É pena
filho, que tenha sido numa altura em que te dava jeito, mas eu aprendi a lição,
mais vale tarde do que nunca”. E foi assim Lígia, o João e a Teresa
saíram muito arreliados e dececionados comigo mas eu mantive a minha posição.Tenciono, se me deixarem, ser uma
avó presente na vida do meu neto mas não quero abdicar de uma vida que comecei
a construir finalmente aos quarenta e sete anos.
Na próxima semana vou com o grupo
para férias em Tenerife. O Zé Ribeiro fez-me prometer que seria sua companheira
à mesa e nas festas. Quem sabe… Talvez eu consiga aceitar a sua companhia e
juntarmos as nossas “solidões” para percorrermos um caminho juntos.Acredito que estejas contente com
este desfecho. Eu, minha boa amiga, estou finalmente a começar a ser feliz.
Nunca é tarde.
Um beijo e desejos de muita saúde
para ti e para a tua família,
Se eu fosse a Lígia, metia-me num comboio e ia dar-lhe um forte abraço. Esta carta revela que é sempre possível alterar o curso da nossa vida. É que o desenho do caminho que vamos traçando é como a imagem das coordenadas da nossa mente. Aí, vamos desenhando as nossas opções e, um dia, encontramos a verdadeira bússola da vida e começamos a valorizar o que é importante, sem abdicar, em equilíbrio.
ResponderEliminarParabéns às mães de todos os jovens que pensam que as mães são seres trabalhadores, prestáveis e sempre disponíveis. Um dia, felizmente, têm de enfrentar outra verdade!
Agradeço o teu comentário,foi importante para mim que tivesses captado o sentido da minha mensagem. É bom quando assim acontece.
EliminarInfelizmente há muitas mães que passam uma vida de sacrifício.Puseram os filhos no mundo e nunca mais deixaram de sofrer pelos mesmos.
ResponderEliminarSe eles adoecem a mãe sofre,se ficam sem emprego, a mãe sofre sacrificando-se a dar-lhe o que podem e muitas vezes o que não podem.
As mães são umas verdadeiras heroínas. Honra lhes seja feita.
Esta é uma situação complicada mas tem várias formas de ser encarada: realmente a Rafaela não foi muito feliz na forma como educou o filho. Pensando que fazia o melhor fez dele um ser egoista que só pensava nele próprio. Esqueceu-se de si mesma e da sua existência como ser humano. Como diz a Fernanda há que saber conciliar os diferentes papéis que vamos desenvolvendo ao longo da nossa vida. E se quisermos temos tempo para tudo: para sermos mães, para sermos avós e para sermos nós! E sermos nós é tão necessário como tudo o resto! A Rafaela isolou-se do mundo para criar um filho; o mundo à sua volta continuou e quando ela despertou desse isolamento percebeu que estava só!Uma solidão que ela própria criou... Ainda bem que despertou mas a felicidade não se alcança espartilhando a vida!
ResponderEliminar