Albertina Vaz
Eu não, eu trabalho, eu sou … uma
privilegiada!
Ainda é noite e a chuva cai, mas
o dia começa bem cedo e tenho de me apressar. Retiro as crianças à pressa do
sono encurtado, sussurro meias palavras: lavar os dentes, a cara, despir o
pijama, tomar o leite… depressa, depressa, é tarde, já estamos atrasados. A
mochila da escola, o lanche arranjado de véspera e o autocarro que não espera.
Quase dói a pressa com que os
apresso, quase dói o dia que começa!
Um beijo de despedida, um até
logo, um aviso – nada de asneiras – uma promessa – eu logo venho buscar-vos –
uma dúvida – e se não te deixarem, mãe? – uma certeza – vem a avó!
Eles vão, pequeninos e indefesos,
rumo a uma vida que começa, num misto de brincadeira apressada que se desfaz
numa esquina. Deixo de os ver ao cruzar da rua e dou uma corrida. Já lá vem o
autocarro: não posso perdê-lo!
Entro e… descanso! Sabem bem
estes minutos que me conduzem: vejo as luzes que iluminam as montras e as
janelas das casas e dentro delas imagino gente apressada, como eu, que se
prepara para mais um dia de trabalho.
E vejo também aquela fila
interminável de gente que dá a volta ao quarteirão e espera, e desespera à
porta do Centro de Emprego! Já passei vezes sem conta por tudo isso! Mas hoje
não, hoje eu sou uma privilegiada: tenho um emprego!
Sou uma trabalhadora
especializada: tenho uma licenciatura em Comunicação Social, um Mestrado em
Estudos Sociais e um Doutoramento em Respostas Sociológicas ao desenvolvimento.
Fiz um Erasmo na Alemanha, tenho um estágio na Bélgica, um pós-doutoramento na
Holanda.
De início consegui um trabalho
razoável: promotora de vendas numa seguradora. É certo que pouco do que aprendi
durante a minha formação me serviu neste trabalho mas tinha um bom ordenado,
carro da empresa, telemóvel, participação nos lucros… Quase dava para sonhar!
E a seguir cometi um erro: quis
ter uma família! Um companheiro, filhos, quis ficar no meu país e partilhar com
os outros o saber que me tinham proporcionado; quis retribuir o investimento
que haviam feito em mim. E fiquei grávida! Ao regressar à empresa,
informaram-me que tinha estado de licença de parto e não tinha conseguido
alcançar os objetivos que me haviam determinado e fui despedida. Sem qualquer
outra justificação para além de ser mulher e ter tido um filho.
E comecei de novo a procurar
emprego, ou melhor um meio de subsistência!
Sou mesmo uma privilegiada: sou
caixa num hipermercado! Trabalho por turnos, faço sábados e quase todos os
domingos e, quando algum dos meus filhos precisa de mim, tenho de pedir ajuda.
Não posso, não devo faltar ao trabalho. Isso de cuidar dos filhos era para
ontem! No outro emprego onde estive – um callcenter de especialidades – fui
despedida porque me chamaram da escola do meu filho: tinha partido a cabeça e
estava no hospital. Nem tive tempo para pensar e corri para ele.
Tinha um contrato a prazo o que
era um luxo, claro. Fui chamada ao diretor: que não se deve abandonar o local
de trabalho, que era uma falta muito grave, que não havia lugar a prorrogação
de contrato. Sem mais! Ainda falei em indemnização e responderam-me que me
queixasse. Queixar-me? Eu bem queria mas tinha de pagar ao advogado, meter um
processo em tribunal, pagar as custas do processo… Nem direito a subsídio de
desemprego tive!
Agora não, agora tenho um bom
trabalho! É verdade que às vezes faço dois turnos seguidos e nem chego a ver os
meus filhos, é verdade que o cansaço é por vezes tão grande que nem tempo tenho
para comer, é verdade que mesmo que um cliente seja incorreto eu tenho de
sorrir, é verdade que faço um pouco de tudo e nunca me sobra um cêntimo no fim
do mês, é verdade que às vezes tenho muito medo e emudeço perante uma
injustiça, é verdade que deixei de sorrir, de ver o sol brilhar, de ver o mar.
Outro dia constou que se calhar não podemos ter férias. Trabalho com direitos –
dizem aqueles senhores que vemos de soslaio porque já não nos resta tempo para
os ver de frente.
Já não sei o que são os direitos,
nem se temos direito a ter direitos!
Claro que não me posso queixar
quando à minha volta vejo tantos amigos, conhecidos, desconhecidos sem um
trabalho. Claro que deixei de sonhar e já nem penso em todos os cursos e
habilitações que adquiri. Já nem para pensar tenho tempo; já nem para pensar
quero ter tempo! Apenas me resta ir caminhando passo a passo e saber que este
meu caminho faz com que os meus filhos tenham pão, em cima da mesa, ao fim do
dia.
Ao começar a ler este texto sentimos sede de o ler de um fôlego só. A vida não-vida que é a vida desta mulher deixa-nos atónitos, aturdidos. Como é possível alguém carregar tal frustração!
ResponderEliminarDepois vem um momento mais pausado e reparamos na magistral construção do texto. A sua autora mostra ter uma riqueza humana excecional, e um também excecional poder de a transmitir. Parece ter escrito como quem liga um programa automático da sua riqueza interior ao teclado e tudo fluiu com a palavra certa, o ritmo certo, a justa medida da consciência da desumanização que alguns nos preparam.
Claro que se pode queixar. O preço do pão dos filhos não pode ser a desumanização dos pais. As crianças precisam de pais a termo completo!
Fiquei sem comentários para fazer ao que acabei de ler. E a Fernanda disse tudo. É que além da realidade, nua e crua, dos nossos dias, tu és mesmo assim. Que tenhas forças para continuar, porque temos muito a aprender contigo.
ResponderEliminarObrigada Albertina
É incrível como num "simples" texto é possível que tanta gente se reveja em partes da vida da personagem...
ResponderEliminarFelizmente nunca passei pela situação de não ter emprego, mas conheço bem as ajudas dos avós, o quase pedir desculpa por ter que faltar para tratar de um filho e a angústia do ter que dar sempre mais no trabalho com o receio de que a nossa falta seja letal para a empresa...
Parabéns pela escrita, apesar da dura realidade...
Obrigado pelas vossas apreciações: fico até sem saber o que vos dizer!
ResponderEliminarMas o que eu queria realmente era que cada um de nós colocasse casos que conhece e que revelam a qualidade do trabalho hoje em dia. Vamos fazer disto uma troca de ideias
O teu texto é a fotografia perfeita do horror que retrata. Nenhum dos pormonores técnicos foi deixado ao acaso, mas esta imagem, tão exímia, só foi possível porque, tem a marca inconfundível da tua enorme sensibilidade. Gostei muito, de tal forma, que gostaria imenso de o dizer. Posso?
ResponderEliminarO teor deste texto e de tal forma stressante, injusto e frustrante, que quase sentimos estar a ler um livro de terror e "suspense", sempre à espera que aconteça ainda algo de pior.
ResponderEliminarLamentavelmente, haverá muita gente que se sente protagonista desta história.
É, neste momento o país que temos, necessitamos cada vez mais de sentimentos de esperança, de força anímica e mental para conseguirmos sobreviver nesta selva.
A mensagem que gostaria de deixar é esta:
É o nosso país, são as nossas gentes, somos um povo bem formado e de grande capacidade, vamos com a ajuda de Deus e de todos nós conseguirmos ultrapassar este terrível momento.
Estás duplamente de parabéns Albertina, pela sensibilidade que demonstras neste texto e por teres partilhado connosco esta que é infelizmente a realidade de muitos portugueses.
Lindo texto, Albertina.Obrigada pela partilha dos seus pensamentos. Como a Fernanda disse o principal,limito-me a expessar-lhe o agradecimento pela oportunidade de ler um tão bonito.
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