terça-feira, 14 de abril de 2015

Português, sexagenário, europeu.

José Luís Vaz

A manhã preparava-se para se despedir e o sol de inverno trazia o conforto e bem-estar que a noite gélida tinha usurpado. Naquela esplanada, recatada, abrigada de ventos fortes e com uma privilegiada exposição solar, permaneciam amantes da acalmia alimentada pelas leituras e pela soberba vista de tanto mar.
Um homem de barba branca e farta com cabelo ralo da mesma cor, passava ali imenso tempo observando a imensidão daquele mar, aparentando, talvez, um olhar vazio, como se esquivando do mundo naquele oásis com pensamento vago. Como um vento fraco mas incomodativo, o cérebro exibia-lhe lembranças em que a esperança e a ambição de tempos idos se debatiam agora com o desconsolo e a decepção de uma Europa decadente.
Jovem adolescente, obrigado a viver os ditames da ditadura, sonhou com ela, ali tão perto, continente da liberdade!

                                               Hoje:
Nem sei que diga...
Nem sei que diga
Nem sei que conte
Que sou, afinal, eu?
Neste fado europeu

Em tempos de servidão vinham notícias escondidas e camufladas que alimentavam aquela esperança de que tudo poderia ser diferente. Atravessavam Espanha, com pés de veludo, espalhando o apetite para a viragem da ditadura que também por ali desrespeitava os mais elementares princípios de cidadãos com dignidade.

O pouco cabelo branco, bem comprido, como sempre gostou de usar, agitado com o vento era penteado por uma larga e velha mão que apertando-o contra a cabeça, era como se estivesse a calcar episódios de outrora que lembrava mas que, muito mais, agora, preferia esquecer. Paradoxalmente, tinham sido tempos horríveis, mas foi o seu tempo de ambição e esperança. Os ares vindos de França, da Suécia, de Inglaterra e de toda a Europa eram como que o suplemento vitamínico que dava força aos que mantinham a chama pela mudança.  

E agora:       
Nem sei que diga
Nem sei que conte
Que sou, afinal, eu?
Neste fado europeu

Tomava agora o “seu” café, saboreando o mais longínquo aroma, acordando para a mais bonita recordação dum país decorado com cravos, que se uniu por uns dias, e que ocasionou uma das mais bonitas festas a que a Europa e todo o Mundo possam ter assistido. Os olhos brilhantes de emoção observavam agora aquele mar com o olhar vazio de quem “vem da festa…” Ficou a democracia e com ela as mais elementares liberdades que nos credenciavam para a adesão à CEE, agora CE, Comunidade Europeia.

E então:      
Nem sei que diga
Nem sei que conte
Que sou, afinal, eu?
Neste fado europeu

Na CEE encontrámos a solidariedade e caminhámos por um estado social que sempre
Nem sei que conte...
teve que competir com as desigualdades que encontrou e não pararam de aumentar. O alcatrão foi a alternativa às escolas e hospitais. Por toda a Europa o desemprego, em crescendo, tem vindo a criar um mau estar geral atrofiando as ambições legítimas dos cidadãos. No norte, a realidade, bem diferente, acrescenta nas relações internacionais o azedume não propício à coexistência solidária. A economia dos números serve os lucros, os prejuízos, ignorando completamente as pessoas. A classe política Europeia clama pelos direitos dos cidadãos e usufrui de regalias abjectas sugadas ao comum dos mortais.
Este homem sexagenário, Manuel, português, pai de três filhos, amados e desejados por um casal cúmplice no amor à liberdade, confessa e deixa transparecer uma serenidade inquieta. Da Ucrânia vem a inquietação, da Grécia a insubmissão e do seu país?

Nem sei que diga
Nem sei que conte
Que sou, afinal, eu?
Neste fado europeu.

José Luís Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Um retrato paradigmático do português atual.

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  2. Não sei que Diga
    Não sei que conte...
    São janelas protegidas por cortinas opacas ...onde está o sonho? Onde mora este motor da vida? Há ainda lugar para sonhar?
    Parabéns Zé Luís!
    Fico a pensar...sonhando...

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  3. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Quem sou eu afinal? - Um ser inteligente que continua a sonhar com um mundo melhor, que não quebra perante as adversidades e que acredita que a esperança é a ultima a morrer!.. Mesmo que durante o ciclo da vida o sonho seja uma constante! Parabéns José Luís."

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  4. O estribilho deste texto reforça o FADO PORTUGUÊS de uma forma magistral: parabéns, José Luís!

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  5. Gosto deste retrato que identifica um povo. Gosto da escrita fluente e sempre acutilante de quem não anda por cá a pensar no tal "fado português" que nos atribuem. Gosto que tenhas pegado neste retrato para, duma forma muito perspicaz, falares das coisas que te preocupam. E gostei ainda que me obrigasses a refletir contigo. Obrigado.

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