José Luís Vaz
A
manhã preparava-se para se despedir e o sol de inverno trazia o conforto e bem-estar
que a noite gélida tinha usurpado. Naquela esplanada, recatada, abrigada de
ventos fortes e com uma privilegiada exposição solar, permaneciam amantes da
acalmia alimentada pelas leituras e pela soberba vista de tanto mar.
Um
homem de barba branca e farta com cabelo ralo da mesma cor, passava ali imenso
tempo observando a imensidão daquele mar, aparentando, talvez, um olhar vazio,
como se esquivando do mundo naquele oásis com pensamento vago. Como um vento
fraco mas incomodativo, o cérebro exibia-lhe lembranças em que a esperança e a
ambição de tempos idos se debatiam agora com o desconsolo e a decepção de uma
Europa decadente.
Jovem
adolescente, obrigado a viver os ditames da ditadura, sonhou com ela, ali tão
perto, continente da liberdade!
Hoje:
Nem sei que diga... |
Nem
sei que diga
Nem
sei que conte
Que
sou, afinal, eu?
Neste
fado europeu
Em
tempos de servidão vinham notícias escondidas e camufladas que alimentavam
aquela esperança de que tudo poderia ser diferente. Atravessavam Espanha, com
pés de veludo, espalhando o apetite para a viragem da ditadura que também por
ali desrespeitava os mais elementares princípios de cidadãos com dignidade.
O
pouco cabelo branco, bem comprido, como sempre gostou de usar, agitado com o
vento era penteado por uma larga e velha mão que apertando-o contra a cabeça,
era como se estivesse a calcar episódios de outrora que lembrava mas que, muito
mais, agora, preferia esquecer. Paradoxalmente, tinham sido tempos horríveis, mas
foi o seu tempo de ambição e esperança. Os ares vindos de França, da Suécia, de
Inglaterra e de toda a Europa eram como que o suplemento vitamínico que dava
força aos que mantinham a chama pela mudança.
E agora:
Nem
sei que diga
Nem
sei que conte
Que
sou, afinal, eu?
Neste
fado europeu
Tomava
agora o “seu” café, saboreando o mais longínquo aroma, acordando para a mais
bonita recordação dum país decorado com cravos, que se uniu por uns dias, e que
ocasionou uma das mais bonitas festas a que a Europa e todo o Mundo possam ter
assistido. Os olhos brilhantes de emoção observavam agora aquele mar com o
olhar vazio de quem “vem da festa…” Ficou a democracia e com ela as mais
elementares liberdades que nos credenciavam para a adesão à CEE, agora CE,
Comunidade Europeia.
E
então:
Nem
sei que diga
Nem
sei que conte
Que
sou, afinal, eu?
Neste
fado europeu
Na
CEE encontrámos a solidariedade e caminhámos por um estado social que sempre
teve que competir com as desigualdades que encontrou e não pararam de aumentar.
O alcatrão foi a alternativa às escolas e hospitais. Por toda a Europa o
desemprego, em crescendo, tem vindo a criar um mau estar geral atrofiando as
ambições legítimas dos cidadãos. No norte, a realidade, bem diferente,
acrescenta nas relações internacionais o azedume não propício à coexistência
solidária. A economia dos números serve os lucros, os prejuízos, ignorando
completamente as pessoas. A classe política Europeia clama pelos direitos dos cidadãos
e usufrui de regalias abjectas sugadas ao comum dos mortais.
Nem sei que conte... |
Este
homem sexagenário, Manuel, português, pai de três filhos, amados e desejados
por um casal cúmplice no amor à liberdade, confessa e deixa transparecer uma serenidade
inquieta. Da Ucrânia vem a inquietação, da Grécia a insubmissão e do seu país?
Nem
sei que diga
Nem
sei que conte
Que
sou, afinal, eu?
Neste
fado europeu.
José Luís Vaz ©2015,Aveiro,Portugal
Um retrato paradigmático do português atual.
ResponderEliminarNão sei que Diga
ResponderEliminarNão sei que conte...
São janelas protegidas por cortinas opacas ...onde está o sonho? Onde mora este motor da vida? Há ainda lugar para sonhar?
Parabéns Zé Luís!
Fico a pensar...sonhando...
De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Quem sou eu afinal? - Um ser inteligente que continua a sonhar com um mundo melhor, que não quebra perante as adversidades e que acredita que a esperança é a ultima a morrer!.. Mesmo que durante o ciclo da vida o sonho seja uma constante! Parabéns José Luís."
O estribilho deste texto reforça o FADO PORTUGUÊS de uma forma magistral: parabéns, José Luís!
ResponderEliminarGosto deste retrato que identifica um povo. Gosto da escrita fluente e sempre acutilante de quem não anda por cá a pensar no tal "fado português" que nos atribuem. Gosto que tenhas pegado neste retrato para, duma forma muito perspicaz, falares das coisas que te preocupam. E gostei ainda que me obrigasses a refletir contigo. Obrigado.
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