Maria Helena Linhares
Habituara-me
a ver a sua figura a deambular dentro da estação, não a lançar o pregão como os
outros vendedores faziam: olha o Século, olhó Notícias, olhó Record. Mas a
murmurar, (penso agora, talvez por falta de forças) o que desejava ser o mesmo
pregão: Olhó Notícias, olhá Flama.
E lá
se ia arrastando, com as costas muito dobradas, ajoujadas ao peso do enorme
sacão onde transportava todas as notícias do mundo...
Não
andava, arrastava os pés, calçados com enormes alpercatas feitas de restos de
pneu, vestida com uma enorme bata azul que, nas costas, a amarelo, devia dizer
Jornais, pois pouco mais se via que o J. O resto, escondido pela mercadoria,
espreitava fora do saco. Na cabeça, um lenço escuro, colocado às três pancadas,
com as pontas atadas sob o queixo, não com a pretensão de embelezar mas para
esconder o cabelo maltratado.
"Senhora dos jornais!" |
Usava
uns enormes óculos, com lentes de fundo de garrafa, e, pela sua pouca visão,
arrastava os pés e o corpo pesado, vergado pela carga que, sem querer,
arrastava também os que apressadamente se atravessavam no caminho pesado
daquela vida sofrida.
Exalava
um cheiro a álcool que tresandava e incomodava os demais. Crianças e
adolescentes inconscientes às vezes empurravam-na para lhe provocarem os
impropérios e pragas que saíam da sua boca enfurecida.
Eu
não conseguia achar qualquer graça àquela espécie de brincadeira, para mim não
tinham qualquer piada pois levava à letra o que a minha mãe recomendava – com
vinho ninguém se meta – mas cobardemente não fazia frente aos outros.
E lá
seguíamos para a escola.
Depois
deixámos de a ver e não pensei mais no assunto nem no alívio que a sua ausência
me causou.
Mas,
um dia, ei-la novamente no átrio da estação, no sítio habitual, carregada com o
também habitual sacão de jornais. Nem tive tempo de a ouvir lançar qualquer
pregão, quando uma voz se faz ouvir em alto e bom som:
- Oh! Oh! Sua bêbeda, traz-me
aqui o Record!
E aí
a figura daquela mulher que eu me habituara a ver, de costas tortas, derreada,
arrastada, rodou qual bailarina em pontas perante os meus olhos, atónita,
agigantou-se, ficou direita, hirta, não já frágil e sem faces arroxeadas e
bradou a quem a interpelara brutalmente:
- Alto aí! Bêbeda, não! Já o
fui! Já não o sou mais. Chame-me não pelo meu nome, pois não o conheço de lado
nenhum. Trate-me por: “senhora dos jornais”. É o que eu sou.
Maria Helena Linhares ©2015,Aveiro,Portugal
Nem sempre o que parece é. Claro que é difícil acreditar na recuperação mas é muito importante que cada pessoa possa ter uma segunda oportunidade para mudar de vida. E é importante também que, sem preconceitos, seja aceite de volta ocupando o lugar que lhe é devido. Este seu trabalho obrigou-me a refletir nestes conceitos e em como somos, por vezes, tão injustos com quem precisa só do nosso apoio.
ResponderEliminarNa sociedade de valores completamente "esburacada", um "remendo" a ilustrar de uma forma inequívoca a força da dignidade.
ResponderEliminar"- Alto aí! Bêbeda, não! Já o fui! Já não o sou mais. Chame-me não pelo meu nome, pois não o conheço de lado nenhum. Trate-me por: “senhora dos jornais”. É o que eu sou." Um final revelador do alto grau de discernimento da personagem que quase todos desvalorizavam.
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