domingo, 19 de abril de 2015

O OLHAR QUE NÃO ESQUECE

Clavel 


Os animais manifestam sentimentos, pelos movimentos do corpo e pelo olhar. Lembro a fidelidade do “Boris” um boxer que, na sua irrequieta aflição, chorava quando pressentia passos de saída da porta principal da casa. Ele lia os mínimos gestos, gestos que indiciavam a partida, em breve...
Bastava que o saco fosse deixado nas proximidades da entrada na casa para ele saracotear os seus nervos. Ziguezaguiar a elasticidade dos quadris. Adensar a sombra lânguida do olhar.
Cada pessoa é o seu olhar.
Como nas sentinelas que fazem parte do quartel guardado, os olhos são instrumentais e integradoras da alma. Neles se reflete a essência e virtualidades da alma. Olhar é manifestação explícita da vida. Com a extinção  da vida fecha-se para sempre  a cortina que comanda o olhar.
Cada pessoa é o seu olhar. Além de ver dá que ver. Penetrar no olhar de alguém é aceder à raiz mais profunda do seu ser.
Pelo olhar se chega ao labirinto do cardume de pensamentos que nomadizam na mente.
Pelo olhar se transmite a mais convincente nostalgia, a saudade, a tristeza, a alegria, a inquietação, a esperança, o cansaço, o prazer, a dor, a raiva, a ameaça, o ódio, a ternura, o amor, a paixão, a compaixão, o desespero, a esperança e por aí adiante.
O olhar quando terno é doce, envolve e adoça quem o contempla e o sabe entender.

O olhar, mais que o algodão, não engana. Ele traduz o que existe no ser humano, o que é o ser humano, as várias gradações de luz ou de sombra.
Não haverá, entre os visuais, quem não tenha tido a experiência de se deter num simples olhar que lhe faça perguntas.
Todos os dias nos cruzamos com histórias de vários olhares, alguns introspetivos, outros
...encontrei um olhar...
alheados, outros famintos, outros ainda comunicativos expondo-se ao interlocutor. Lembro uma vez, em dia que esqueci, encontrei um olhar que, sem uma palavra, transmitia, sem reservas, a plena confiança como se me conhecesse, desde sempre, sem nunca antes nos termos visto, confiante a estar de acordo a tudo, sem haver nada para negociar e acordar. O olhar exprimia a disponibilidade total para tudo o que fosse de bom. Esse olhar escancarou a porta ao êxtase da sua leitura, no domínio transcendente, da metafísica, do irreal.

Esse olhar, de doçura e serenidade total realçava a oferta espontânea sem compromisso, por algo que não se sabe o que é nem o por quê, pois nunca se saberá. Esses olhos falaram eloquentemente quando duas lágrimas neles assomaram e, como pérolas se soltaram, por ação da gravidade. Rolaram de súbito sem que pudessem ser apanhadas e reapareceram nos olhos de quem as viu rolar ao acreditar ver um anjo chorar. E acreditou, desde então, que os anjos também choram e fazem chorar. Nunca esquecerei o anjo desse olhar.

Clavel ©2015,Aveiro,Portugal

1 comentário:

  1. "O que dizem os seus olhos?" - é a pergunta que me assomou quando fui percorrendo o olhar deste texto. E depois pensei que, se os olhos refletem o que dentro de cada um se vai gerando, então nada melhor que uma lágrima para captar um homem bom.

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