segunda-feira, 5 de maio de 2014

Ser ou não ser solidário

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos –  Contradições do ser humano. Todos os que queiram colaborar podem enviar os seus trabalhos para os contactos do Evoluir que aparecem na página do blogue.


Começava o dia a acordar com aquela sensação horrível. Uma tempestade de chuva desvairada tocada por um vento sem destino que tudo arrastava. O barulho era ensurdecedor, estores, portas e tudo que abanasse faziam uma sinfonia completamente desafinada. Ainda na cama pensava:
Quantos não procuram um abrigo...
— Quantos não serão os que a esta hora resistem, procuram um abrigo, um plástico, a ponte ou o pontão mais próximo… A minha capacidade de ser solidário esfumava-se como o fumo que foge e se perde lá longe. E estava eu convencido de que era um ser solidário…
Arranjei-me e saí. Conduzia o meu automóvel com algum cuidado. A intempérie era assustadoramente violenta e podia atraiçoar o mais atento. De rádio ligado ouvia notícias nada animadoras sobre o que estava a acontecer por todo o país. O trânsito aumentava a todo o momento, congestionando a estrada — autêntica ribeira — que para alguns continuava a ser a pista de velocidade do dia-a-dia. Alguns quilómetros volvidos e na berma da estrada alguém me pedia boleia. A péssima aparência da pessoa amedrontou-me e hesitei entre o travar e acelerar. E, seguramente, passei por aquele homem de cabelos compridos, completamente encharcado, com a consciência a encontrar os habituais medos de circunstância: e se fosse um gatuno? Não, dar boleia não, o seguro não contemplaria qualquer acidente… nestas alturas temos que ser racionais… O meu egoísmo protegeu-se por inteiro, a minha pessoa não protegeu ninguém.
Era agora ultrapassado por uma ambulância do INEM que seguia atrás de um carro da
Ser solidário
mesma organização. Mais alguns quilómetros e lá estava um brutal acidente. Parei mais à frente e decididamente fui inteirar-me da dimensão da tragédia. Um carro desgovernado veio embater num outro, que seguia em sentido oposto, tendo ficado ambos abraçados numa medonha amálgama de latas. Foi uma ambulância com uma senhora, depois outra com um rapaz, ainda novo, uma outra com um homem calvo muito mal tratado, enfim, uma tragédia lavada e agravada pela forte chuva que teimava   em continuar.
Perto de mim alguém chorava quase sem se notar. Era um choro sofrido de angústia que vinha lá muito do íntimo de uma senhora que já não era criança e que ali junto à estrada anonimamente se limitava à única coisa que lhe restava: chorar.

Perguntei-lhe:
— A senhora vinha num dos automóveis?
Respondeu que sim, lamentando a sua sorte:
— Vou perder o meu filho e o meu marido, como posso eu resistir a tudo isto?
Percebi então que aquela senhora ficou ali sem qualquer apoio e o marido e filho estariam num hospital onde, naturalmente, ela gostaria de se dirigir para se inteirar do seu estado de saúde. Desta vez, não hesitei e disse-lhe:
— A senhora gostaria de ir ao hospital onde eles se encontram?
A resposta foi imediata:
— Lá, é que eu queria estar… — e chorando, intensamente, acrescentou: — Para ir saber sabe-se lá o quê.
Aceite a minha oferta, conduzi-a até ao hospital onde deixei uma pessoa aflita e muito agradecida que continuava angustiada, mas mais perto dos seus.
O egoismo
O sentido da viagem para o hospital era exactamente o oposto àquele que havia poucos minutos passados eu tinha feito. Sem hesitar procurei pelo senhor de mau aspeto, de cabelos compridos desgrenhados ao vento e à chuva. Desta vez, já não o vi. Alguém, diferente de mim, não ponderou e atuou sem dúvidas ou medos.
“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.” Gabriel Garcia Marquez.
Ser ou não ser solidário?
No nosso ADN podemos já conter essa herança. Mas é, essencialmente, no processo educativo que vamos interiorizar ou não uma atitude solidária. Através dos exemplos e ensinamentos em casa e na escola passamos a assumir uma postura perante a vida que nos envolve e que acaba por nos caracterizar. A solidariedade — predisposição natural para estender a mão ao nosso semelhante — está, na sociedade, que todos os dias construímos, a tornar-se em algo quase utópico. Os objectivos estabelecidos no ensino ou em qualquer concurso determinam a exigência única de ser primeiro. A obsessão criada nos alunos concorrentes mais legitima um egoísmo eficaz do que qualquer outra atitude. O facto de haver legislação que nos inibe de “dar uma boleia”, ou de mexer num corpo prostrado na rua, sabe-se lá porquê, transforma-se numa linha de conduta que cada vez mais nos afasta da solidariedade.
Ser solidário é um estado de alma e não a representação de qualquer papel a troco daquilo que muito poucos ganham.
Ser solidário é um estado de espírito sempre disponível para a partilha e para o dar sem esperar receber.
Ser solidário é a capacidade de apoiar quem já está na “fossa” e nunca em qualquer circunstância exibir a sua intervenção.  
Ser solidário, caminha a passos largos para um conceito de loucura ou mesmo de alguém a quem falta o juízo. Observemos o que já se está a passar com a atitude altamente solidária do voluntariado.
Às vezes basta uma flor.
A introdução de acções de voluntariado num curriculum vitae de um estudante começou a ser valorizada por universidades e outras entidades. Esta atitude quase que de imediato foi completamente pervertida por empresários sem escrúpulos, que, aproveitando-se da ideia, passaram a obter serviços não gratificados por parte de gente jovem absolutamente exposta a chantagens vergonhosas e degradantes.
O voluntariado, atitude de elevada nobreza, praticado por reformados, é hoje, em muitos casos, aproveitado para evitar a contratação de profissionais.
A subversão dos valores impera e um pouco apaticamente, com maior ou menor passividade, todos nós nos vamos habituando a um novo quadro de valores que repudiamos mas acabamos por aceitar.
A solidariedade deverá fazer parte integrante do nosso quotidiano para que não nos transformemos em seres aberrantes, detestáveis e horríveis.
Dissertar sobre egoísmo é uma perda de tempo, é dar importância ao que nenhuma tem, é algo abjecto que não merece tal distinção, é a antítese da vida que eu não desejo seja uma opção daqueles seres pequeninos — as minhas netas — para a sua vida.
A solidariedade sim, vale tudo. “A solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana.” Franz Kafka estava cheio de razão.

José Luís Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Muitas intervenções solidárias poderiam ser desenvolvidas... Assim quisesse o PODER que a CIDADANIA fosse um valor! Mas um PODER CORRUPTO está muito mais seguro com cidadãos egoístas.

    ResponderEliminar
  2. Cada vez mais a sociedade nos “obriga” só para olhar o aspeto exterior da pessoa com quem nos cruzamos no nosso dia-a-dia.
    O egoísmo ou também o medo ao reparar no homem de cabelos compridos e mau aspeto?
    “Um PODER CORRUPTO está muito mais seguro com cidadãos egoístas”. Concordo plenamente com a Fernanda Rendeiro.
    Um alerta para a nossa reflexão.
    Gostei muito Zé Luís.

    ResponderEliminar
  3. Falando de solidariedade, o narrador tem nota positiva. Foi cauteloso no primeiro caso (quem não seria?), mas um rebate de consciência ainda o levou a equacionar prestar ajuda mais tarde. Uma boa reflexão sobre o ser ou não solidário nas múltiplas situações que se nos deparam no dia a dia.

    ResponderEliminar
  4. Se o ser humano é solidário ninguém o duvida; se utiliza essa solidariedade sempre em favor dos outros aí é que está o problema. Quantas vezes não encontramos pessoas que, a coberto da solidariedade, utilizam as suas energias para satisfazerem prazeres pessoais quantas vezes prenunciadores de ambições de prestigio pessoal. Este texto é uma reflexão sobre a solidariedade e a forma como ela se pronuncia numa sociedade em que o falso parece verdadeiro e a verdade se mascara a cada esquina.

    ResponderEliminar
  5. É preciso alguém que nos faça pensar sobre valores que se vão perdendo. Gostei muito de ler este artigo.

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...