quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Afeição pelos animais

Numa aldeia, humilde como tantas outras, vivia uma criança, franzina e pequena para a sua idade, de seu nome Lídia.Como os pais eram lavradores pobres, ela não tinha tempo de brincar como as outras crianças.
Foi para a escola, mas pouco tempo; tudo o que aprendeu foi porque tinha mesmo muita
A família vivia com
grandes dificuldades
curiosidade e procurava quem lhe explicasse. E como ela tinha vontade de saber mais e andar mais tempo na escola como os outros meninos!
A família vivia com grandes dificuldades; lavradores, com muitos filhos, comendo só o que a terra produzisse e mesmo assim era pouco.
Tinha oito irmãos mais novos que ela. Ajudava os pais no que podia, mas tão pequenina era, que pouco ajudava.
Como referi, andou pouco tempo na escola e logo teve que se fazer à vida, para ajudar no sustento dos irmãos. Mesmo assim aprendeu a ler e a escrever, não se esquecendo das histórias do livro da terceira classe, porque as achava bonitas e também não teve ninguém que lhe ensinasse .Ensinaram-lhe sim, a fazer os trabalhos dos adultos.
Os pais puseram-na a morar, ou seja, ela foi viver e trabalhar para casa de outros lavradores para se sustentar e angariar mais alguma coisa para os irmãos.
Qual era o trabalho desta criança que tinha apenas dez anos, ou menos?
Ela sonhava ser como as outras crianças que andavam na rua a brincar à macaca, a saltar à corda, enfim, brincadeiras que todos gostavam.
Pois em lugar do sonho, ela tinha uma dura realidade.

... tirar o leite às vacas
O trabalho que os patrões lhe destinavam era tratar dos animais: vacas, galinhas, e todos os outros que lá houvesse.
Todos os dias tinha de se levantar cedo para tirar o leite às vacas. Apanhava-lhes a erva ou a palha, conforme o que houvesse nas terras. Logo aí criou um sentimento muito grande, pelos animais, porque eram os seus companheiros.
Era com eles que ela falava, mesmo sem obter resposta.
Era tão pequenina que se perdia no meio das vacas, que sempre obedeciam à sua voz.
Quando chegava o Verão, toca a sair da cama ainda mais cedo, porque tinha de levar as vacas para as terras de milho, pô-las no poço de rega a tirar água. Punha a canga nas vacas e prendia-a ao pau que estava agarrado à nora, no poço. Depois era tocá-las com a própria
O poço de rega a tirar água
mão que os animais já sabiam que era para andar. Entretanto a água subia pelos alcatruzes da nora e saía num buraco que dava para o rego que a Lídia tinha feito. Esse rego era coberto de lama para que a água não se infiltrasse pela areia e fosse sugada.
Era a vida desta criança, que tinha por companhia os animais que ouviam os seus lamentos e viam as lágrimas que lhe corriam pela carita.
Chegava o mês de Setembro e toca de se preparar para a apanha do milho. Saía da cama às quatro da manhã e lá ia ela de foicinha ao ombro, com um naco de broa no estômago e talvez uma caneca de café, que ela mesmo fazia.
Nesta altura era uma criança de onze anos, continuando franzina, porque o excesso de trabalho não lhe dava hipótese dela crescer e desenvolver um pouco mais.
Apesar de ser criança fez-se adulta apressadamente.
Depois de adulta, casou e continuou a gostar de animais. Então, na casa que construiu e onde constituiu a sua família, resolveu ter animais: vacas, porcos, galinhas e outros, porque ela passara a gostar do trabalho que fizera, enquanto criança.
Como este trabalho era demasiado, então resolveu fazer só criação de porcos.
Comprou uma porca de raça, ou seja, daquelas que têm umas coxas bem gordinhas e começou a trabalhar no que mais gostava.
A porca ficou prenha e quando chegou a hora de parir, a Lídia não a abandonou. Ficou sempre a observá-la, porque segundo sabia, nem todos os animais aceitavam os primeiros filhos.
A porca pariu dezasseis porquinhos
E realmente o que ela temia aconteceu; a porca pariu dezasseis porquinhos e, como as dores eram muitas, queria matar os filhos, enraivecida.
Lídia, cheia de coragem, e mesmo a porca querendo atacá-la, não abandonou os pequeninos, afastando-os da mãe. Assim que teve possibilidades pediu auxílio ao veterinário, porque alguns animaizinhos estavam a desfalecer.
Ele veio imediatamente e deu uma injecção à porca para a fazer dormir.
Assim que ela adormeceu, pôs os porquitos a mamar, uns de cada vez. Quando a porca acordou, estava calma e aceitou muito bem os filhotes.
A Lídia chorou de emoção, porque salvou os pequeninos e a mãe, que teria de ser abatida se não mudasse o seu comportamento e isso ela não queria, porque se tinha afeiçoado ao animal.

Hoje, a mesma porca é uma ótima mãe que obedece às ordens da dona, roncando sempre que sente os seus passos.


Júlia Sardo©2014,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. A história deste texto é-me muito familiar. Também eu me afeiçoava muito aos animais e na hora da matança de algum, estava proibida de assistir. Fizeste-me reviver os meus tempos de criança. Gostei muito e obrigada Julinha.

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  2. As grandes pequenas Lídias espelhavam a pobreza extrema de um povo e "iam servir" como se dizia nesse tempo. Que farão as Lídias de hoje? Até para criar porcos existem requisitos legais que dificultam a espontaneidade e a luta pela sobrevivência. Possivelmente, também os porcos ficarão a perder!

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  3. "O trabalho da criança é pouco, mas quem não o aproveita é louco" Ficou-me na memória este aforismo que acompanhava uma imagem dum garoto a apascentar ovelhas, sistematicamente exibido no Jornal da Lavoura (ou seria no Jornal da FNPT- Federação Nacional dos Produtores de Trigo?) que o meu avô assinava. Assim, a necessidade dos pais e o beneplácito superior ditavam a vida das crianças nos meios rurais: uma infância vivida apressadamente entre os trabalhos do campo muitas vezes demasiado árduos para a idade. Gostei da história, Julinha.

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  4. A relação de afetividade da Lidia foi direcionada para os únicos seres humanos que lhe proporcionaram a alegria de crescer e fez dela uma pessoa conhecedora e sensível. Essa experiência de trabalho infantil - inaceitável em qualquer tempo - permitiu-lhe, no entanto, adquirir conhecimentos que lhe foram úteis. Mas tudo deve ter o seu próprio tempo e cada criança deve crescer num ambiente em que a violência não tenha lugar: este trabalho ultrapassava a violência - afastando-a dos seus iguais. Daí a busca de afeto nos animais.

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  5. Uma história de dor, de tristeza, mas também de aprendizagem e discernimento, que localizamos imediatamente num passado longínquo. E as histórias de dor, de sofrimento e de tristeza das crianças de hoje? Será que as conhecemos? Será que as conseguiríamos contar? Estas perguntas assustam-me... Mas são milhares de crianças a sofrer horrores...

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