domingo, 15 de dezembro de 2013

Não se passa nada!

Com este trabalho interrompemos o Ciclo denominadoViolência sobre o ser humano” que temos vindo a desenvolver: a participação de muitos colaboradores e a importância que lhe queremos dar leva-nos a voltar ao mesmo no inicio do próximo ano.

E porque é Natal gostaríamos de desafiar as crianças e os seus pais a participar no EVOLUIR e a enviar-nos os seus trabalhos para podermos festejar a partilha, a dádiva, os sentimentos que sempre nos visitam e a família que queremos presente.

Pairava no ar algo estranho, havia um não sentir nada, mas um palpitar não sabia o quê, uma inquietação do improvável, um estar lá longe de tudo e de todos. O coração intranquilo de uma mãe, como outra qualquer que se deita a adivinhar o inimaginável que, na sua opinião, possa perturbar algum dos seus. Mortifica-se, pensa, observa, quebra os seus próprios silêncios para não se denunciar.
O jantar com toda a familia reunida
Durante o jantar, finalmente, com toda a família reunida, a satisfação, mas também o cansaço de mais um dia daqueles que passaram e nada deixaram, aquela inquietação em nada ajudava a construir a personagem vital daqueles poucos momentos de partilha, de convívio com as alegrias ou frustrações agora despejadas no cesto das intimidades de uma família. Três filhos eram a bandeira daquele casal. Por eles faziam tudo e tudo era sempre pouco para quem tudo lhes queria proporcionar. Bens materiais? Alguns, os indispensáveis, não eram ricos, longe disso, mas os pais preocupavam-se no investimento possível que proporcionasse aos filhos o alargar de horizontes, a aquisição de conhecimento, a experiência de novas oportunidades, a descoberta dos outros, sempre aprendendo com e respeitando a diferença, fomentando neles o ser solidário indispensável à nova sociedade global. À noite, cada um procurava no recanto do seu quarto corresponder às respetivas exigências académicas e os pais, na sala, entremeavam com os afazeres inadiáveis o diálogo natural dum casal que quer pôr a conversa em dia depois de mais um dia de trabalho.
— Lena, dá para perceber que tiveste um dia esgotante. Estás muito cansada, não estás?
Há qualquer coisa com a
nossa menina
Completamente surpreendida tentou recompor-se, passou a mão pelo cabelo e numa atitude aparentemente descontraída, pestanejou, sorriu e respondeu:
— Sabes que naquela casa trabalha-se muito todos os dias… É curioso é estares tão preocupado. Simpatia tua, Jorge.
— Não, não continues a disfarçar… Já te conheço há uns anitos e não me consegues enganar. Alguma coisa te preocupa, eu sei. Não queres falar?
— És incrível… Desta vez, guardou o sorriso, franziu os olhos e com ar preocupado deu-se por vencida.
— Há qualquer coisa com a nossa menina… Ela anda muito esquisita e eu não sei o que se passa… É muito triste perceber que a nossa filha não anda bem e nem sequer a posso ajudar…

— Ó Lena, mas que loucura. A miúda está impecável, ainda agora ao jantar, não reparaste nas respostas que deu aos irmãos? Olha, eu achei-lhe muitíssima piada e penso que ela está a crescer a olhos vistos!
— Pois é. A Sara é parecidíssima comigo…
— Ai, disso não tenhas a menor dúvida…
O importante era ter alguma pista
— Ouve, Jorge, ando a observar a nossa filha há uns poucos de dias e ela sabe disfarçar como ninguém. Eu conheço a minha filha e ela, a mim, não engana. Anda tristíssima, mesmo muito triste, abatida de cara e até com falta de apetite. E com uma desfaçatez, só própria de uma atriz, ilude toda a gente — não se passa nada — e recompõe-se não dando qualquer hipótese de mais conversa.
— Estou a ficar preocupado com a tua conversa. Pior que isso, estou revoltado comigo mesmo, não consegui desconfiar de nada. Tu desculpa, não haverá alguma precipitação na tua análise?
— Antes houvesse. O importante era termos alguma pista.
Fez-se o silêncio, como num filme de “suspense”: ambos emudeceram, olhavam-se como que a pedir ajuda um ao outro, contorciam-se no sofá, suspiravam, respiravam profundamente e estavam a ficar tão preocupados que faziam tudo menos pensar.
Jorge, estou a lembrar-me duma coisa. Amanhã vou telefonar à diretora de turma da Sara e pedir-lhe uma reunião, que achas? É uma forma de tentar perceber se há queixas dela, mudança de comportamento, enfim, qualquer coisa…
— Penso ser uma boa ideia, se bem que as informações sobre ela têm sido sempre ótimas… Mas… Penso que sim, é uma tentativa… Depois liga-me, por favor.
— Jorge? Já falei com a diretora de turma da Sara e foi amabilíssima. Vai já receber-me amanhã.
— Então e eu não vou?
— Parece-me despropositado. Afinal sou sempre eu que tenho ido às reuniões de turma. Mas também te digo, pela forma como me falou não espero descobrir qualquer pista. Começou logo a falar da Sara e sabes como ela é doida com a miúda. Tenho que desligar. Logo falamos. Beijinhos.
— Beijinhos, chau!
Foi um fim de dia como tantos outros, talvez a única diferença, a atitude vigilante que Jorge
Atitude vigilante
assumiu em relação à sua filhota. Ao outro dia, novo dia, as mesmas rotinas do até logo, um beijinho, passa um bom dia, que tudo te corra bem… e cada um seguia o seu caminho.
O telemóvel de Jorge toca e ansioso estica o braço e ansioso ficou porque ainda não era a Lena. Mas era do Pedro, que quereria ele?
— Então filho, tudo bem?
— Olha pai, não fiques preocupado, mas vinha dizer-te que preciso de falar contigo e lembrei-me que podia apanhar-te à tua saída e até chegarmos a casa conversávamos.
— Não fico preocupado, mas desde quando é que tu precisas de falar comigo e não o podes fazer lá em casa?
— Ó pai, ouve, por favor. Há um assunto de que tive conhecimento hoje que me obriga a proceder desta forma. Pai, daqui a cerca de uma hora falaremos e tu, tenho a certeza, vais entender. Desculpa ter que ser assim…
— Como queiras, até já.
Verdadeiramente acabrunhado, dividido entre o telefonema atendido e aquele que tanto ansiava, procurava concentrar a sua atenção no trabalho que o absorvia intensamente. A hora passou-se e nada… Agora encontrar-se-ia com o Pedro, sem sequer imaginar como iria atuar quando a mulher telefonasse.
Já na rua, avistou o filho que com andar apressado vinha ao seu encontro.
— Então Pedro, o que se passa?
— Calma pai, não pagas uma biquita? Íamos aqui a esta pastelaria e conversamos.
Perseguições...
O assunto era acerca de Sara. Um colega do Pedro tinha também um irmão mais novo que frequentava a mesma escola da irmã e que foi para casa comentar que havia uma colega que, por ter começado a usar óculos, era praticamente perseguida por um grupo de cinco raparigas que faziam questão em implicar, zombar e apoquentar a sua amiga, pelo simples fato de ter agora outro visual. A atitude de revolta do miúdo sensibilizou o irmão mais velho que lhe prestou toda a atenção, acabando por vir a perceber que ela seria com certeza irmã do seu amigo de faculdade. Pai e filho embrenhados na conversa esqueceram o tempo e só despertaram quando Lena telefonou finalmente.
— Jorge, estou preocupadíssima, o que se passa contigo? Tiveste algum acidente? O Pedro disse-te alguma coisa, também ainda não chegou?...
— Ó Lena, estou agora a ver as horas, desculpa, vou com o Pedro e estamos a cinco minutos de casa. Na reunião, o que te disse a professora da Sara?
— Não há problema nenhum, mas como atrasou, esperava chegar a casa e contar-te logo. Afinal o que se passa com vocês?
— Estamos mesmo a chegar e já falamos, está bem?
— Que remédio… Até já!
Jorge conseguiu disfarçar e segredar à mulher o motivo do atraso de pai e filho. Teriam que controlar a ansiedade até poderem ficar sós para poderem pensar e desabafar. Pais e filho mais velho assumiram então personagens de duplo pensamento, transmitindo entre eles com um desempenho notável através de olhares cúmplices que se alteravam em função das necessidades do momento. Sara, como sempre, continuou a sua representação como se uma mulher já fosse. A criança sofrida escondia no mais fundo de si aquilo de que se envergonhava de contar e que iria entristecer toda a sua família e como uma concha ocultava ao mundo aquilo que para si era muito penoso.
No fundo, não queria ser “a caixa de óculos”, “a cegueta”, “a feiosa”. A tortura dos papelinhos
"caixa de óculos", "cegueta", "feiosa"
que passavam de mão em mão durante as aulas começava a perturbá-la de tal modo que ameaçava já a sua estabilidade emocional. Todos os dias era judiada e sujeita a intimidações humilhantes, precisamente, por algumas das que se diziam muito amigas. Empurrões, gritos, vozes sarcásticas eram a razão da procura do isolamento que passou a ser o seu refúgio a todo o momento interrompido abruptamente pelas acusadoras e difamadoras da sua ainda sensível personalidade. Todos os dias fugia às provocações daquelas horríveis pessoas que ela nunca imaginou conhecer. Os outros, muitos deles davam conta, mas cultivavam o seu estatuto hipócrita de pseudoneutralidade.
A Sara tinha uma família e como tantas outras famílias interrogaram-se, investigaram, interrogaram, refletiram, procuraram saber muitos porquês para uma situação destas. As respostas habituais: — aqui na escola nunca ninguém viu qualquer atitude indiciadora de tal comportamento — nada se passou dentro da escola — não podemos meter-nos em assuntos que só dizem respeito às famílias — a nossa função é ensinar e não educar — nós gostamos muito da Sara, nunca demos conta de nada.
Psicólogos, médicos, todo o tipo de acompanhamento necessário foi proporcionado à Sara, uma criança de nove anos, que não teve culpa de nada mas bem cedo sofreu a tortura de ser amedrontada e coagida física e psicologicamente. Ela teve uma família que com muito amor cerrou fileiras para a defender. E tudo, só porque uma criança tinha começado a usar óculos…

José Luís Vaz©2013,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. Esta família cerrou fileiras, mas outras nem dão pelo campo de tortura em que uma escola, e outros espaços frequentados por crianças e jovens, se pode tornar.
    Como muito bem está tecido no texto, a teia da família e dos amigos é suporte indispensável para as crianças: seres extremamente fortes, mas também muito frágeis.
    E na escola, não faltam óculos com mais graduação, não faltam mais condições de serenidade que permitam ver para além da imensa burocracia e do peso da avaliação? Onde têm as escolas uma verdadeira rede de enquadramento psicológico e social das crianças?
    Obrigada,José Luís, por me dar o ensejo de pôr estas inquietações.

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  2. A discriminação negativa nas escolas vem de longe e que o consumismo elitista agravou. Por isso a família e as instituições devem estar atentas aos mais ínfimos sinais, como se induz do reflexivo texto do José Luís.

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  3. Afinal a violência tem destas coisas: pode ser silenciosa e magoar mais que mil pancadas, pode ser calada e gritar mais que um grito sufocado por um soluço que não quer ou não pode sair.
    Este trabalho obrigou-me a pensar que devemos estar atentos aos mais pequenos sinais porque realmente a vida dum ser humano só tem sentido se todos nos juntarmos em seu redor e cerrarmos fileiras não só à violência gritada mas também à consentida (um filme de televisão, por exemplo). Gostei muito, Zé Luís!

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