A nossa história
começa muito antes de existirmos. Esta história começa com uma Albertina, que
não sendo eu, já havia dentro dela um pedaço de mim. Na altura ela não sabia
que teria uma neta com o mesmo nome e, heranças, a mesma altura também.
Havia dentro dela um pedaço de mim |
Ela partiu muito
jovem, não viu os netos nascer. Mas quis o destino que esse prato enorme
sobrevivesse anos e anos até que os seus netos o pudessem tocar.
Uma vez por ano.
Na véspera de Natal
levantava-me com duas ou três tarefas marcadas no calendário. A primeira era
cantar a noite feliz até cansar os ouvidos mais carinhosos, a segunda era levar
à tasca e mercado do Sr. Joaquim, pai do meu amigo Tóni, uma garrafa de litro,
vazia, para encher com vinho tinto e trazer os dois cacetes encomendados para as
rabanadas de vinho, porque a minha mãe não tinha o hábito de fazer rabanadas de
leite, e a terceira tarefa, a principal, a que acompanhava a banda sonora era
observar a minha mãe naquele ritual de Natal.
Começava por acender o fogão de lenha |
Começava por acender o
fogão de lenha, podíamos sentir o aroma a madeira subir pelas paredes e
terminar num fio branco a sair pela chaminé, as couves por arranjar ocupavam a
banca, as batatas separadas numa bacia, o cheiro a canela que subia do leite a
ferver para o creme ou na aletria em forma de quadrados, por fim as rabanadas
que perfumavam toda a casa com uma mistura de canela e vinho; se a fantasia
pudesse ter um cheiro, seria esse. Todos juntos e em movimento, a televisão a
chamar-me para ver os bonecos que lançavam estrelas, a mãe a chamar-me para lhe
chegar uma colher, um pano, para com ela descer os quatro degraus para a
garagem, pegar no prato azul com um peixe escondido pelo pó e finalmente sentir
dentro de mim que a noite de natal estava a chegar.
Éramos quatro, número
perfeito para esse prato perfeito. Cada um tinha o seu sítio marcado e era
perfeito. Calorosamente, repetidamente, perfeito.
Ao final da noite, muito antes da meia-noite, ouvia-se um barulho na chaminé e a minha mãe, admirada, com uma cara curiosa, perguntava se estaria alguém na cozinha e a magia acontecia: o Pai Natal estivera cá em casa e deixara, em cima da tampa do fogão, quatro prendas, dois pai de natal de chocolate e duas caixas de bombocas.
Deixem-me que vos
diga: a beleza tem dois sorrisos de criança em pijama, papel de embrulho no
chão e uns dentes em tons de castanho a pintar cada gargalhada. O pai e a mãe
olhavam, os olhos sorriam, hoje percebo porquê.
Enquanto dormíamos o
prato grande ficava no meio da mesa, intacto, com dois garfos pousados na
beira, à espera – uma para a avó e outro para o avô.
Rezava a lenda que
durante a noite as almas que se foram vinham comer à nossa mesa, da nossa ceia
de Natal.
Três garfos... |
Uns anos mais tarde já
só comíamos três à mesa. Embora muita fantasia tivesse partido num dia qualquer
da vida, mantinha-se a tradição de na ceia de Natal deixar três garfos pousados
no prato grande com o peixe azul no centro, para que durante a madrugada as
almas comessem da nossa ceia.
Três garfos...
Hoje, adulta,
lembro-me do meu Natal de criança como algo muito lá longe, só meu e do meu
irmão. Era tão nosso, tão puro que nunca poderei fazer justiça à beleza daquele
dia, daquela noite, tão simples e no entanto tão único.
Eu nunca poderei
explicar ao meu filho, que desde sempre viu as prendas debaixo do pinheiro, que
o Pai Natal realmente existe. Eu tentei, mas os tempos são outros. Quanto ao
prato azul, bem, esse descansa na garagem.
Mudam-se as histórias
mas nunca se perderão as memórias. Guardo as que me aquecem o coração.
Feliz Natal
Albertina
Silva Monteiro
©2013,Aveiro,Portugal
A noite de Natal é sempre uma noite em que à alegria dos reencontros, à magia do Natal e das crianças, se mistura a saudade dos que não estão (estando connosco) e cuja presença silenciosa pode ser, como a Albertina retratou, o garfo perfilado junto ao prato do peixe. Em"Memória a Mil Vozes" abordámos também este estar presente estando ausente e escrevemos assim: "No centro, um ramo de rosas era a presença dos que já não podiam comparecer. Que saudade imensa do pai que tão cedo partiu, do primo João que nos deixou naquela viagem em que ia começar uma nova vida..." Gosto muito de ser leitora do que escreve: um bom Natal para si, Albertina!
ResponderEliminarBonitas lembranças do Natal de criança. Se cada um de nós procurar bem, aparece sempre um Natal que nos marcou. Vivíamos de coisas simples, mas tão boas. Gostei muito de relembrar, também, algum Natal em família.
ResponderEliminarPara a magia do Natal encenada pelos adultos é muito importante utilizar bem a ingenuidade de uma criança. Falar-lhe no Pai Natal ou no Menino Jesus é exatamente igual, desde que, nunca seja desprezada a ideia da festa da família. O consumismo e a discriminação cultural invade-nos e corrói princípios e sentimentos. Mas... É natal!
ResponderEliminarNo Natal da minha infância não havia Pai Natal - é que não se justificava, os presentes eram tão poucos...
ResponderEliminarMas havia filhoses, rabanadas... Um cheirinho a canela, a pinheiro... E, sim, havia o prato grande redondo da minha avó, e os pratos antigos com o cavalinho que só saíam do armário em dias especiais. Havia o calor da lareira e a família reunida... Tempo em que estavam cá todos os que eu conheci. Obrigada, Albertina, por me ter feito reviver essa época. Feliz Natal.