sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Sentia-se ferida de luz por dentro.

Fernanda Reigota


A hora de abandonar o local de trabalho provocava sempre em Alexandra um estado de lassidão. A sua mente aproveitava-o para processar e armazenar tudo o que era importante. Sabia que rapidamente mergulharia noutro estado de vigília em que era necessário coordenar os horários e os apoios logísticos que as atividades pessoais dos filhos exigiam.
...um precioso minuto de encontro
consigo própria
Na alternância do estado de tensão e atenção ao trabalho para o estado de vigília que as atividades dos filhos requeriam ao de fim do dia, Alexandra guardava para si um precioso minuto de encontro consigo própria. Conseguiria uns minutos para prosseguir a leitura que a estava a entusiasmar? Precisava de falar com o filho mais velho para compreender a súbita mudança de atitude em relação aos estudos. Há muitos dias que não tinham uns momentos em que o único objetivo fosse estar em família e viver. Viver como quem se deixa aquecer por um raio de sol de outono. Viver como quem se extasia com o abraço que o Céu e a Terra dão no início da primavera e depois se encanta com a pujante criação que vai surgindo cheia de cores e de cheiros. Viver como quem se deixa refrescar por uma chuva miudinha de verão. Viver como quem saboreia o som do crepitar do lume no inverno.
Neste minuto de encontro consigo própria, e enquanto os filhos encestavam umas bolas antes de abalarem todos, Alexandra ia adiantando pequenas tarefas rotineiras. Quando chegasse definitivamente a casa outras tarefas ocupariam a família.
Sem explicação explícita, Alexandra  entalou um dedo. Os gritos  espontâneos  que deu 
Não sei para que aprendemos
estas coisas na escola.
atraíram os filhos. Apesar das dores intensas, conseguiu fixar a perplexidade, a ansiedade e a surpresa com que os filhos a fixavam. O mais novo, o João, tomou o comando das operações e mandou o irmão, o Pedro, ligar para o 112. Mãe, ligo? Não é preciso, meus queridos. Liga! Não, não é preciso! Não sei para que aprendemos estas coisas na escola.
Passados os grandes minutos de dores mais intensas, Alexandra falou com os filhos. Era natural que o João quisesse aplicar o que tinha aprendido há tão poucos dias, mas precisava de saber avaliar as situações e ele ainda era muito novo. O Pedro intuiu que a mãe estava plenamente capaz de decidir. Explicou aos dois, mas principalmente ao João, que a dor tinha sido muito forte, mas tinha estado sempre consciente, não tinha sangrado, respirava bem… Assim, não era necessário chamar o 112.
– No entanto, numa situação em que tenhas dúvidas e estiveres sozinho com a vítima, não hesites e chama mesmo o 112. O que aprendeste na escola é muito válido, podes ter a certeza!
Estás melhor? Já dói menos? Consegues conduzir?
Os seus meninos!
A preocupação dos filhos ainda continuava presente e ela tentava aligeirar o que acontecera, pois na verdade as dores tinham sido muitas, mas nada de verdadeiramente grave acontecera. Eles, mal iniciassem o treino, desanuviariam.
Os seus meninos! Duas crianças, dois homenzinhos.
Deixou-se ficar por ali a vê-los treinar e a descontrair a memória que se foi dilatando, dilatando até se fixar numa praia onde dois meninos brincavam, sentindo o prazer da areia molhada que recolhe as pegadas para as ondas se entreterem a apagá-las.
Sempre de sorrisos cúmplices, sempre de olhares sonhadores, ninguém precisava de esclarecer que aqueles meninos eram irmãos. O mais velho, com um sorriso meigo, mal saía da água, que o mais novo achava sempre fria, ia logo falar ao irmão. O mais novo, com um sorriso malandro, agarrava-se ao irmão e, muitas vezes, fazia-lhe uma marotice.
Não eram propriamente dóceis quando havia uma obrigação para cumprir: o protetor solar era como um pequeno tornado de areia que lhes fustigasse a pele e, por isso, sempre mal recebido… E em casa? A televisão não era logo desligada, os chinelos davam-se muito mal com os pés, mas responsabilizavam-se por algumas tarefas domésticas.
Estava a perder os seus meninos:eles
estavam a crescer.
E fora essa responsabilidade e capacidade de ter iniciativas em casos inesperados que confirmara a Alexandra que os seus meninos estavam a crescer bem em todos os sentidos. Estava a perder os seus meninos: eles estavam a crescer. Estava a ganhar dois homens capazes de pensarem de forma autónoma. Naquele dia eles presentearam-na com notas muito boas: um satisfaz plenamente na disciplina da Vida.
Um dia, quando começassem a alargar os voos, quando ela não os pudesse abraçar todos os dias, lembrar-se-ia daqueles olhares de perplexidade e ansiedade que, em momentos de surpresas mais perturbadoras, saberiam discernir e optar.
Sentia-se ferida de luz por dentro. 


 Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal

1 comentário:

  1. Os pequenitos crescem tão depressa que estes momentos, num instante, se transformam em passado e ganham uma dimensão desmedida num presente em que a memória pretende eternizar. É verdade, Fernanda, o tempo corre veloz e sem complacência. A nós só nos basta vê-los crescer, ajudá-los a voar e endireitar-lhe as asas, quando eles nos deixam.

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...