domingo, 23 de fevereiro de 2014

Livre como os pássaros que me habitam

Vamos hoje dar inicio a um ciclo de publicações que denominámos - Relação entre o homem e o animal. Aproveitamos para convidar todos os que queiram colaborar para o fazerem, na medida em que ainda estão a tempo de remeter os vossos trabalhos para os contactos do Evoluir que aparecem na página do blogue.


Olhos castanhos profundos, pele muito bronzeada, contrastando com os seus cabelos muito louros, postura descontraída de quem observa: menino quase homem, homem ainda menino a interrogar o sentido da vida que já pressente muito diferente de todos os seus sonhos de criança.
Rui estava a passar o fim daquele dia de verão, que queria ficar lembrado pelo calor excessivo, à beira da piscina. O vento fora sempre quente, parecendo soprado de uma enorme fornalha. Tinha sido um dia de muitos mergulhos, muita conversa com os amigos, com desconhecidos e família. Dentro de água, as pessoas riem sem saber bem de quê, conversam como se todos se conhecessem, irmanam-se como se tivessem de vencer num só mergulho toda a timidez a que a rotina de um ano de trabalho obriga.
Ao longe, estendiam-se campos, onde pontuavam algumas manchas verdes de árvores de copas largas e folhas abundantes.
Os pássaros tinham ali um refúgio natural. Não tardaria, começariam a esvoaçar para se refrescarem numa pouca de água, procurarem alguma comida e ficarem tranquilos para passarem a noite.
Ele reconhecia o canto de todas as espécies da região. E os seus olhos expressivos iam pousando nas pessoas que se haviam aquietado: o regresso a casa estava iminente. Naquele silêncio conjugador de efabulações, naquela dormência gostosa de fim de tarde, Rui fixava uma pessoa e logo ela se punha a esvoaçar… A determinada altura, o recinto da piscina era um tumulto de sons dissonantes: o entorpecimento, em que se aquietara, fizera-o transformar a piscina num riacho onde as pessoas passaram a ser pássaros que se refrescavam alegremente depois daquele dia de calor intenso.
Quando ouviu a voz da mãe, abriu os olhos e sorriu. Muitas pessoas já tinham partido. Em casa esperava-o uma tarefa rotineira: ele e o pai tinham de cuidar dos muitos pássaros que possuíam.
O Rouxinol do Japão
Havia o viveiro dos pequenotes, assim chamado por nele habitarem pássaros de pequeno porte, como o Pintassilgo, o Dom Fafe, o Verdilhão, o Rouxinol do Japão, ou o Canário Arlequim Português.
A Catatua de Crista Amarela estava bem representada noutro viveiro: aves com um grande sentido gregário entre si, estabelecem também relacionamento rápido com os seres humanos, deixando-se domesticar.
Por ouvir o pai e por investigação autónoma, o Rui era já um conhecedor de aves, pelo menos esclarecido.
Quando tinha oportunidade, era com enorme prazer que falava das aves. Sorria sempre que se referia ao Periquito Bandeira, não pela sua agitação ruidosa, mas
Piriquito bandeira
principalmente por não existir qualquer hierarquia entre eles e serem animais solidários, com um grande sentido de interajuda. Esta faceta gregária tinha, para o Rui, a sua máxima expressão no facto de, em estado de liberdade, voarem em formação: eram autênticas esquadrilhas verdes. Já observara vídeos desse espetáculo que tanto o maravilhava.
Contudo, já era com alguma visível apreensão que falava do Pintassilgo, por ter sido tão capturado há um século que a espécie estivera ameaçada. Também o entristecia saber que o Rouxinol do Japão, na Europa, apenas existia em cativeiro, apesar de a sua existência ser conhecida na Alemanha a partir de 1860.
No caminho até casa conseguiu ouvir um pisco de trinado intrigante e reportório variado, para além do seu ouvido sinalizar, mais longe, um rouxinol de canto alegre, chamativo e variado, mas com notações de ansiedade e solidão. A fêmea devia estar no choco e ele partilhava a tarefa, cantando para ela. Com aquele dia quente, o canto poder-se-ia prolongar
pela noite dentro. 
Melro
Pareceu-lhe ainda ouvir o gorjeio voluntarioso e caprichado de um melro: estas aves estavam a adotar os espaços urbanos como habitat, talvez por sentirem que a sua convivência com os agricultores não era pacífica.
Para o Rui, canto desconhecido era motivo de investigação.
Mas os trinados que o saudaram eram todos familiares e esperavam ansiosamente água fresca, comida e companhia.
Naquele dia acelerou a permanência nos viveiros e pediu ao pai que tratasse ele das gaiolas. Não era cansaço físico, era simplesmente cansaço.
Foi uma luta silenciosa entre a almofada e a sua cabeça para adormecer. Cada vez que se ajeitava, a almofada revelava-se sempre pequena: aquela imagem das pessoas transformadas em pássaros a deliciarem-se na piscina repetia-se como um eco, que se ia ampliando. Depois, acrescentou à imagem uma debandada dos pássaros porque pressentiam perigo. Nesta fuga, algumas catatuas magoavam-se, o Periquito Bandeira formava em esquadrilha e eram os primeiros a debandar. E nessa luta adormeceu extenuado pela força da imagem que tinha surgido na piscina e agora se ia modificando.
Os seus pensamentos e as suas vivências interiores sobre os pássaros estavam aprisionados dentro de si, como se fossem independentes do mundo exterior, e iam-no afastando das pessoas, dos afetos e da Natureza. Sentia-se enrolar sobre si próprio, olhos virados para dentro, e tudo ia escurecendo na sua vida.
Não queria continuar a viver agarrado à verdade que o mundo lhe propunha e que não era a sua. Não, preferia inventar uma verdade que atingisse ilhas de liberdade, horizontes de utopia e que fosse tecida com os mais belos trinados e gorjeios.
Que sentido tinha a vida perante este paradoxo: fala-se em liberdade e logo surge a comparação com o voo dos pássaros; diz-se como são belos estes pássaros e logo são aprisionados.
Apesar deste episódio, Rui foi apaziguando a sua angústia ainda sem nome concreto e definido. As férias permitiam uns passeios combinados de véspera e foi assim que a família decidiu ir a uma exposição-feira de aves. O evento estava a ser publicitado nas redes sociais e o pai, que reparou nele, propôs o passeio.
Durante a viagem, a mãe e a irmã anunciaram que não iriam permanecer muito tempo na exposição. Preferiam dar uma volta pela cidade e juntar-se-iam para o regresso. Nesse momento o pai interpelou o Rui: “Tu ficas comigo, preciso da tua ajuda para escolher um papagaio.” Este era um desejo antigo que iria concretizar: a ajuda do filho era preciosa, não só pelos conhecimentos que possuía, como pela perspicácia com que descobria características nas aves.
Só o Rui para saber que o Periquito Alexandrino fora o primeiro parente do papagaio a
Piriquito alexandrino
ser introduzido na Europa por Alexandre Magno. Os gregos foram criadores destas aves, apreciando a sua beleza exótica, a sua capacidade de repetir palavras e sons, para além de serem capazes de estabelecerem uma relação de confiança com quem conhecessem.
Ou então, para explicar todo o processo que criadores portugueses desenvolveram para chegarem a uma mutação de canário, o Canário Arlequim Português, tendo a espécie sido reconhecida há pouco mais de uma década.
Na exposição, fizeram um reconhecimento geral: apreciaram uma ou outra novidade, um ou outro exemplar excecional e foram-se detendo nos espaços que apresentavam papagaios para venda. O ruido excessivo do espaço começou a incomodar o Rui. De cada ave que fixava uma ave, via, com espanto, que ela fugia dela própria, voando. Intrigado com o caso que se repetia cada vez que olhava uma ave e mentalizava o seu nome, anunciou que estava com fome. Pai e filho foram procurar o bar: o pai ia aproveitar para falarem mais pormenorizadamente das três aves que já tinha selecionado. Queria que o Rui lhe desse a sua opinião com tranquilidade e fora daquele ambiente em que era preciso falar muito alto e pouco se ouvia.
Quando o Rui já saboreava um gelado especial, que comia sempre que ia à cidade, o
Papagaio Electus
pai pediu-lhe a sua opinião sobre o Papagaio Cinzento, ave com talento especial para imitar frases, e sobre o Papagaio Eclectus, ave em que macho e fêmea apresentam colorações absolutamente diferentes. Também pôs a hipótese do Papagaio-de-Barriga-Laranja pelo extraordinário azul das asas que contrasta com o verde do corpo e o amarelo que se concentra em cor laranja na barriga.
À medida que o pai falava, o Rui ia visualizando cada ave. Pela força da imaginação, os três papagaios vieram pousar nos ombros e nos braços do pai e ele permanecia calado, saboreando o seu gelado.
Ao seu redor esvoaçavam aflitivamente os 600 000 papagaios que no ano anterior tinham sido capturados para venda. Rui sabia que apenas uns 600 sobreviveriam ao cativeiro. Naquele momento limitava-se a ouvi-los.
Papagaio de
              barriga laranja
− Quero uma companheira. Não me calo! Quero uma companheira.
− Estou com raiva. Tenho ciúmes.
− Parvalhão, nunca estás comigo! Parvalhão, nunca estás comigo!    
− Falta-me o ar! Nesta casa não consigo respirar.
− Tenho o juízo inteligente de uma criança de quatro anos!
− Vou ficar deprimido e arrancar penas e as unhas. Vou ter um ataque cardíaco.
Rui abanou a cabeça em sinal de negação e respondeu ao pai:
− Por mim, não levas nenhum papagaio para casa.
Primeiro o pai paralisou, depois reagiu:
− Também gostas de aves, Rui. O papagaio é também para ti.
− Podes ter a certeza de que gosto.
De seguida, saiu para o exterior do recinto, avisando o pai que esperaria junto do carro.
Aquela noite foi outra luta, mas, antes de adormecer, conseguiu dar nome concreto e definido ao que lhe andava a acontecer: não tenho vocação para carcereiro de aves.
Urgentemente tinha de alcançar a sua autoconfiança e serenidade. E que nome daria ao que lhe trouxesse a segurança interior, quando a alcançasse?


Ainda tentou reavivar um artigo que tinha lido sobre o facto de, nos países importadores de aves exóticas, a fuga de algumas estar a dar origem a populações adaptadas e em liberdade. Adormeceu tranquilamente.
Sonha e serás livre de espírito... Luta e serás livre na vida.
Na manhã seguinte, o pai encontrou os viveiros e gaiolas com muito poucos residentes: as portas estavam todas abertas.
Durante uma meia hora ficou estático. Quando conseguiu raciocinar, decidiu que as portas iriam permanecer assim: abertas. Poderia alguma ave voltar à procura de comer, poderia alguma das que ficara querer experimentar ser livre.

Rui tinha ido à piscina e, a cada mergulho, repetia para si próprio: sou livre como os pássaros que me habitam.


Fernanda Reigota©2014,Aveiro,Portugal

9 comentários:

  1. Não há dúvida que o Rui era um perfeito conhecedor das mais variadas espécies de pássaros. Em tempos, que me parecem remotos, tive um viveiro de canários. Realmente dá mágoa sentir o desespero dos animais a quererem sair do cativeiro. Gostei muito do teu texto.

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    1. É essa consciência do desespero dos pássaros em cativeiro que devia incomodar todas as pessoas.

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  2. Um texto belo, rico e exemplar. Belo porque a LIBERDADE é sempre linda (publicado no 27º aniversário da ida do nosso Zeca Afonso). Rico - quem sou eu para o dizer - com uma história muito bem concebida e maravilhosamente escrita. Exemplar - para os que julgam que basta o talento - pelo imenso trabalho de pesquisa.

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    1. O trabalho foi algum, mas hoje verifiquei que me preparava para fotografar melros quando fui esclarecida que eram estorninhos.
      Obrigada pelo paralelismo da data com Zeca Afonso. É uma pessoa que vive em nós.

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  3. Lê-se como quem abraça uma aragem de vento que abana consciências e desperta tempestades. O conceito de liberdade não se aplica só aos seres humanos – está intrinsecamente ligado à vida nas suas múltiplas vertentes. E estende-se até as últimas consequências, até onde seja necessário abrir portas, rasgar janelas ou semear abraços.
    Uma cuidadosa pesquisa, reveladora dos hábitos e características de algumas aves, conduz o leitor, levando-o a perceber que, se o sonho nos liberta, só a luta nos permitirá á liberdade da vida.

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    1. A tua primeira frase é como um cristal onde se reflete todo o texto. És uma escritora de frases lapidares. Obrigada por esta "tempestade" que registaste!

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  4. “Livre como um passarinho”. Depois de tantas lutas interiores, Rui constatou que esta frase não se aplicava aos pássaros que tinha.
    Rui fez tudo bem. Soltou-os e deixou a porta aberta para os que quisessem regressar tão habituados estavam ao cativeiro. Ficou de consciência tranquila, já podia dormir o seu sono de pessoa justa e, tal como ele, os pássaros finalmente eram livres.
    Adorei este texto Fernanda.

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  5. Também eu um dia aprisionei pássaros, às escondidas do meu Pai que sempre nos tentou fazer compreender o sofrimento a que sujeitávamos aquelas criaturinhas tão graciosas e tão frágeis. Identifico-me inteiramente com a mensagem do texto. Deixemos que as aves voem livremente na Natureza ou na nossa imaginação.

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  6. O texto parece recriar a harmonia das diferentes sonoridades dos instrumento de uma orquestra habilmente conduzida pela mestria do Rui que se debate com um problema da liberdade como atributo inalienável de todos os seres.

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