segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A Voz do Silêncio

Com este trabalho encerramos o Ciclo denominadoViolência sobre o ser humano” que temos vindo a desenvolver: agradecemos a todos os que connosco quiseram colaborar.


Os olhos desmedidamente abertos, um esgar de pavor, enrolada sobre si mesma, os pés quase tocando a boca e o olhar perdido do rafeiro acossado pelo bater da porta, ou por um passo forte que se adivinha e se ausenta.
Corria sentada...
Corria sentada, revirando a cabeça de um lado para o outro, à procura de alguma coisa, ou de alguém, ou de nada, ou com medo de ser notada, de ser encontrada, de ser achada.
Permanecia imóvel na soleira da porta, encostada à parede como se quisesse fugir para dentro dela e um turbilhão de medos acossava-a. O medo, sempre! Sem saber o que fazer, sem saber para onde ir ou onde ficar. O medo tornara-se um amigo presente, uma ideia de fugir e uma vontade de ficar, um querer esconder-se, um desejo de se dissolver numa nebulosa onde pudesse recomeçar: de novo!
Receava que a vissem, que não a vissem, que fosse notada, que ninguém a encontrasse no vão daquela escada, que alguém subisse ou que descesse… Receava viver e tinha medo de ter de morrer!
Se o sol aparecesse… não, melhor é o escuro da noite, quando as sombras vagueiam e os rostos se calam. E pedir ajuda estava fora de questão: a vergonha de dar a conhecer a cara magoada, as nódoas negras, o sangue escorrendo daquela ferida no peito, o cabelo desgrenhado, aquele pedaço que lhe fora arrancado…
Sabe-se impotente, acusa-se de tudo por que passam os seus filhos, julga-se responsável
E aquele silêncio...
pelo sofrimento deles. Inunda-a uma dor imensa, sem medida nem peso, sente que perdeu completamente a capacidade de reagir, de falar, de gritar, de se revoltar contra a vida em que se enredou e se envolveu nela, como um casulo se envolve na sua teia. E aquele silêncio que se impõe a si mesma e a impede de abrir a boca e gritar!
Os amigos, que sempre a avisaram, as crianças que continuavam lá em cima e que, indefesas, nem sabem o que fazer, a ansiedade de as ver, de as abraçar, de lhes sorrir mesmo na tristeza do seu olhar. O melhor mesmo era subir as escadas e voltar para aquela casa: talvez ele já estivesse a dormir, talvez se lhe desse um beijo, talvez se lhe fizesse aquela comida especial, talvez…


Há sempre um talvez que a impede de dizer basta! Há sempre um talvez que a cala perante uma bofetada, um safanão, um grito incontido, uma criança que escuta, um soluço que a sufoca, um filho que espreita.
Tinha de voltar para casa
Tinha de voltar para casa: sabe-se lá o que ele faria se não encontrasse o jantar feito ou se os miúdos ainda estivessem acordados. Bem lhe bastava ter de o ouvir por um motivo nunca justificado – as meias fora da gaveta, a gaveta aberta, o relógio no chão, o frigorífico vazio, a cadeira fora do seu lugar, as revistas em cima da cadeira, a cadeira atirada ao chão e sempre, sempre a violência numa presença constante que não deixa lugar a uma justificação, a uma palavra, a uma desculpa – mesmo que não haja lugar a justificações porque nada se deve justificar.
Uma relação que esfria, um beijo que se esconde, os olhos sempre discretos que não podem – não devem – olhar para lado nenhum, nem mesmo para dentro de si ou dos outros. Nada pode suportar uma violência silenciosa que se acomoda, permanece, perdura e se instala.
Tropeçou num degrau, numa cadeira, num homem: sentiu-se a ser atirada de um lado para o outro, a ser violentamente abanada, percebeu que havia chegado ao fim. E depois só ficou o silêncio, um silêncio pesado que doía de tanto doer.
Alguns dias depois, encontraram-na: eram cinquenta e quatro, as fendas que aquele corpo suportara! Ninguém conseguiu, porém, perceber o porquê daquele sorriso sereno, que se desenhava no rosto, numa imagem que correu mundo e espantou gentes: era apenas a voz do silêncio a gritar bem alto o silêncio da vida.


Albertina Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

8 comentários:

  1. era apenas a voz do silêncio a gritar bem alto o silêncio da vida." Foi a própria dor, já incapaz de se conter no silêncio imposto pela voz, que falou, gritou através dos golpes profundos desenhados no rosto, através dos estilhaços daquele ser despedaçado. A dor extrema que este texto nos faz sentir. Brilhante, Albertina!

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  2. Com a ofensa surge a dúvida, o receio da morte do sentimento, a hesitação, a perturbação do medo de querer e já não acreditar, o contorcionismo da vontade em voltar a perdoar e voltar a esperar pelo ajustamento mas não haver fé, o medo de errar... (Belo balancear entre o sim e o não, o ser e o não ser...)

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  3. "A Voz do Silêncio" espelha-te, mostra-te, exibe muito de ti e quando isto acontece ficas na tua praia. Os problemas humanos e sociais brotam com imensa sensibilidade dos teus neurónios para a intensidade com que os dedos teclam as palavras e eis a violência, tão horrenda retratada numa escrita tão bela!

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  4. Nesta forma de escrita, até chega a ser bela a forma como o silêncio tortura com o ferrão da dúvida. Lê-se outra vez para verificar se não haveria uma fenda por onde escorresse a voz da libertação. Não! A tortura é sempre perfeita e silenciosa!

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  5. O sorriso sereno, depois de tanto sofrimento, era o rosto de quem tinha deixado de sofrer. Quantos casos como este por esse mundo fora. Lindo texto, Albertina, embora carregado de tristeza.

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  6. Magnifico texto para encerramento deste ciclo. Todo ele carregado de sofrimento mas de uma beleza extrema. É uma delicia ler os teus textos. Uma vez mais, obrigada Albertina.

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  7. adore o tema, mais sempre esquecemos que há uma brutalidade que não dá golpes, não deita cadeiras abaixo, é silenciosa, é agresão sicologica, fica marcada na mente e nunca mais sae. Continua com teo evoluir, faz muita falta, beijo

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  8. Li em crescendo sofrimento, raiva, irritação, revolta… Por fim, antecipei o desfecho: a libertação possível e a que veio sublimar o sofrimento, a raiva, a irritação, a revolta sentidas antes. E quando um texto provoca sentimentos sublimes no leitor, está tudo dito! Silêncios que gritam… Obrigada, Albertina Vaz!

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