segunda-feira, 25 de novembro de 2013

André e Raquel

Dia Internacional pela Eliminação da Violência


Simbolicamente iniciamos hoje a publicação de uma série de textos que retratam a violência sobre o ser humano nos seus múltiplos aspetos. Convidamos todos os que queiram participar nesta reflexão de molde a enriquecer  sempre este local de troca de saberes e partilhas.

Abstraído das pessoas e olhando pela janela, André ia relaxando do treino de duas horas que acabara há pouco. Faltava um jogo para a equipa assegurar o primeiro lugar na competição regional: a esta preocupação de que, no que dependesse de si, a equipa não falhasse, acrescia alguma tensão com a aproximação dos exames. Até àquele seu 9º ano, já fizera outros exames e várias provas intermédias. Os resultados não iam ser decisivos, era apenas o brio próprio que estava em causa: queria tirar boas notas como acontecia a maior parte das vezes ao longo dos anos de estudo que já percorrera.
O som de fundo do motor do autocarro e a luz exterior, que deliberadamente absorvia, fizeram-lhe sentir uma distensão de todo o seu ser. A menos de um mês do início do verão, os reflexos do cair da tarde chamavam a luz mágica do aproximar da noite.
As casas já festejavam a chegadas das pessoas que as humanizavam. Era o alvoroço das crianças que tudo querem contar sobre o longo dia passado fora, era a alegria do reencontro dos que nelas partilham cumplicidades, era o bem-estar por um dia de trabalho responsável, era! Era também o jogo das incertezas e das surpresas que a vida a cada momento nos propõe.
Mais uma paragem. E, naturalmente, despertou um pouco. Fixou o movimento
Que estaria Raquel a fazer
naquele lugar?
compassado das pessoas a entrarem, um ou outro atropelo de quem muito quer um lugar sentado, uma ou outra hesitação de quem já não sente toda a firmeza da juventude e os seus olhos fixaram um vulto feminino que, de costas, permanecia sentado no banco da paragem. Não fazia sentido: naquela rua só passava aquela carreira e o vulto tinha qualquer coisa de familiar…Que estaria Raquel a fazer naquele lugar? Ela vivia noutra zona da cidade…
Saiu na paragem seguinte e correu até à amiga. Quando os seus olhares se cruzaram, Raquel não conseguiu disfarçar as lágrimas e as tremuras que a sacudiam a espaços. André agarrou-lhe as mãos. Conheciam-se desde o jardim de infância. Sempre foram amigos inseparáveis até terminarem o 6º ano e amigos continuaram depois, mas em escolas diferentes. Quis saber o que lhe tinha acontecido. Raquel olhava à sua volta como animal ferido que tem medo de ser descoberto. Fixou o sol que aspergia os últimos pontos luminosos daquele dia sobre a Terra com a mensagem “Amanhã será um novo dia”. Reviu em filme algumas gargalhadas infantis dadas em conjunto com André e sacudiu a cabeça em sinal de assentimento.
– André, estou aqui apenas para me acalmar e poder ir para casa sem levantar suspeitas. Confio em ti para manteres em segredo o que te vou dizer. Estou a passar uma fase de namoro menos boa. Eu sei que vai passar!
Eu quero saber o que se passou.
– Eu quero saber é o que se passou. Tu não consegues deixar de olhar à tua volta e continuas a tremer.
André abraçou-a para ver se conseguia acalmá-la. A resposta foi um longo grito de dor, enquanto afastava André.
– O que tens?


Raquel desatou num choro baixinho, entrecortado por soluços que a faziam estremecer. André esperou até ela poder falar. Ela pressentia que agora iria falar sem subterfúgios.
E desabafou. Aquele tinha sido um ano de terror na sua vida. O namoro com o Carlos tinha começado cheio de promessas e novidades. Ela fora feliz, apesar de sentir que era ele quem mandava desde o primeiro minuto. As malhas do comando foram-se apertando e ela não reagiu como sabia que devia ter feito. Isto é uma fase e passa-lhe. Cedeu muitas vezes com a esperança de que ele confiasse nela e se apaziguasse: deixou de sair com as amigas, deixou de falar para outros colegas da turma, quando ele não estava presente, passou a entregar-lhe o telemóvel mal chegava à escola, passou a vestir só o que ele consentia. Mas, apesar de
Mas apesar de todas as cedências...
todas estas cedências, ele começou a exigir mais. A primeira vez que o contrariou foi agredida a pontapé, tendo o cuidado de não a atingir onde as marcas fossem visíveis. Estes massacres transformaram-se numa rotina. Agora era tarde, porque ele gravara vídeos que ela não queria que ninguém conhecesse. Chegara àquela paragem, tão distante da sua casa, sem ter muita consciência das ruas que percorrera, depois de o namorado a ter agredido mais uma vez. Naquela tarde, já ia a caminho de casa quando se lembrou que deixara na escola um livro importante para estudar para o outro dia. Carlos espiava-a e apareceu repentinamente na sua frente. Ela gelou, paralisou, gaguejou uma desculpa. Ele até se mostrou calmo na frente da amiga que viera ter com ela. Acompanhou-a depois de saírem da escola, sem mostrar qualquer implicação, mas, quando a rua em que caminhavam ficou sem pessoas, ele deitou-a ao chão e aplicou os golpes habituais. Depois afastou-se lentamente… “Tens de aprender que não podes fazer nada que eu não saiba”. Foram estas as palavras que Raquel ouviu, enquanto permanecia no chão, contorcendo-se com dores no corpo e na alma. Por uns segundos de raiva, ainda pensou em reagir. Depois levantou-se e caminhou sem rumo até que se sentou no banco da paragem onde André a havia reconhecido.
– Tenho só de me acalmar, para chegar a casa sem sinais de ter chorado. Fez-me muito bem falar contigo e ele há de mudar! Estás a ligar para quem?
– Para os teus pais, Raquel! Eles têm de saber o que se passa contigo.
Enquanto os pais não chegavam, os dois amigos mantiveram-se em silêncio. Os candeeiros da rua começavam a projetar alguma claridade que se misturava com réstias de luz solar que demoravam a despedir-se da Terra. Os olhos amargurados e confusos de Raquel vislumbravam umas vezes ameaças, outras vezes charcos de luz naquela transição crepuscular. Na sua cabeça tudo se confundia. Ela não podia ter contado a ninguém. Sob a forma de grito, um eco repetia-se “E agora? Eu não quero que ninguém veja aqueles vídeos.” Via-se a si própria à beira de um precipício e sentia, em todo o seu corpo, muitas mãos que a pressionavam, obrigando-a a aproximar-se do abismo. O grito em forma de eco, que se ia produzindo na sua cabeça, foi-se alojando na garganta e André foi surpreendido pelo ruído de uma travagem forçada a que se juntou um brado de animal ferido.

No dia do jogo decisivo para a sua equipa, André acordou, sentindo uma estranha tranquilidade. Telefonou a Raquel e percebeu que a sua amiga estava um pouco mais calma. Provavelmente, levaria muito tempo até voltar a confiar em alguém, mas os pais e a polícia tinham conseguido gerir o caso muito bem. Carlos –do germânico carl, ou seja, homem– acreditou que Raquel ficara retida em casa por doença contagiosa, como explicou a diretora de turma. Assim, a polícia conseguiu surpreendê-lo na posse dos vídeos que tanto apavoravam Raquel.
André e a sua equipa até poderiam perder o jogo naquele dia, mas iriam encestar na baliza do futuro…

Quando o jogo terminou, André – do grego Andréas, com o significado de “próprio de um homem” – e os colegas desenrolaram uma faixa no campo onde se lia:
STOP À VIOLÊNCIA NO NAMORO!

                                                                        Fernanda Reigota ©2013,Aveiro,Portugal

6 comentários:

  1. Maria Fernanda, que texto tão revelador do que a violência é capaz.
    É um grito de aviso a quem pensa que silenciar os atos de violência leva a que a mesma cesse.
    Torna-se cada vez mais necessário a mudança de mentalidades para prevenir e/ou evitar estes dramas.
    Os amigos também são muito importantes nestas situações.

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  2. Mais um Dia Internacional que veio à frente da globalização...
    A Eliminação da Violência, já velha, muito usada, algumas vezes proclamada, ressurge com particular intensidade numa sociedade muito evoluída tecnologicamente sem qualquer tipo de inovação que vítimas, defensores ou polícias pudessem usar com a esperança de razoável desempenho. Um sistema judicial que sentencia vítimas a permanecer junto dos seus agressores não indicia nada de bom... Teremos que continuar a desenrolar faixas e a publicar textos como este.

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  3. Fantástico...aposto que muitas "Raqueis" e muitos " Carlos" se revêem neste texto. Parabéns Fernanda e que não se calem as vozes.

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  4. Não é por a caso que se diz: quem tem um Amigo tem um tesouro. Pois quantos serão as pessoas que passam o que a Raquel passou. Por sorte teve um amigo em quem confiou e que a soube ouvir. Um texto muito bonito cheio de humanidade e Amizade.

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  5. Que mil ou um milhão de vozes se levantem. Fim à violência!

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  6. A violência é sempre um ato sem hipótese de aceitação. Mas estamos em pleno século XXI e, inexplicavelmente, assistimos a um recrudescimento de violência a todos os níveis da sociedade. Em vez de avançarmos estamos a regredir. O teu texto Fernanda retrata uma violência que nos deixa sem palavras. E interroguei-me: se o namoro é uma busca do amor onde cabe nele a violência? Se o namoro é a descoberta do outro, o encantamento, o deslumbramento, para onde caminhamos se assistirmos calados a uma violência que nunca poderemos tolerar?

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