Albertina Vaz
Estava um dia de calor
infernal, daqueles que já ninguém conhecia há muitas, muitas décadas. Nem
apetecia dar um passo, mexer uma mão, sair de casa – até simplesmente
movimentar um dedo parecia uma tarefa insustentável.
Nem um ruido, nem o canto
dum pássaro, nem o soluçar de uma fonte – nada nem ninguém queria mover-se
porque o simples agitar de uma folha se assemelhava a um esforço sem medida que
tudo alterava e tudo dimensionava num tamanho insustentável.
Nos campos, outrora
verdejantes, até as correntes de água tinham parado na sua corrida permanente
em busca do mar, ou de rio que circulasse mais abaixo, ou de um lago que se
espraiasse numa sinfonia de verde e azul, em mil tons duma paleta inspiradora impossível
de decalcar.
Como vou sair-me desta? |
Na sua toca a formiguinha
colocava a mão na cabeça, limpava o suor que lhe caía em grossas bátegas e
declarava: - Não
consigo voltar lá a cima, já nem consigo dar mais um passo, já não há água por
aqui… Como vou sair-me desta.
-
Porque não cantas como eu? Não vês que não estou cansada? Eu só me canso de
dançar, de pular, de tocar o meu violino e de lançar para o ar os sons
vibrantes da minha música. Em dias destes farto-me de pensar em ti: eu vou ao
mar, eu vou aos montes, eu vou onde quero, eu amo a liberdade e canto hinos de
música refrescante que alegram quem comigo se cruza.
-
Pois, pois, canta, canta que um dia hei de ver-te chorar.
E lá continuaram as duas - uma trabalhando para
abarrotar o seu celeiro e a outra espalhando música e cor nos campos dum mundo
pequenino feito de invejas, cobiças, ciúmes e maledicências. Até que o calor se
foi e a noite veio estender-se e cobrir dum negro aluarado em que a luz da lua
enchia as vozes e aclarava os sons.
... os trinados do seu violino... |
Os sopros dos clarins da
cigarra inundavam a noite e sabiam a mel coado e a flor de jasmim, os trinados
do seu violino estendiam-se pela planície e espalhavam o encanto e a beleza
duma ópera inacabada ou duma sinfonia de guitarras soluçando como gorjeios de
mil vozes de pássaros ondulantes num voo desgarrado e solto a caminho da terra
do prazer. Nada nem ninguém poderia ficar indiferente!
A formiga, a caminho da toca,
ia pensando que tinha uma vida muito triste -
sempre, sempre a correr de um lado para o outro, acartando para o seu celeiro
tudo o que podia apanhar e até o que podia tirar aos outros - os tempos haviam mudado: dantes
o celeiro era de todos, agora o celeiro é apenas dela e há-de enchê-lo até não
poder mais. Não fosse o canto da cigarra e tudo seria mais difícil ainda, mas
tinha de continuar. As suas tarefas eram inadiáveis, o seu trabalho não podia
ter descanso.
Às vezes enganava-se - pensava que ia arrecadar
mais mantimentos, até obrigava as outras a contribuir cada vez com mais e mais
provisões, mas nem sempre as coisas corriam como ela planeara. Depois levantava
a cabeça, seguia em frente e declarava: Vamos a trabalhar mais e mais e mais…
Sois um povo muito bom, mas o que fazem é pouco, é muito pouco! Estais pouco
habituados a trabalhar: a partir de amanhã vamos começar mais cedo e acabar
mais tarde.
Vamos começar, perguntavam
as outras? - nós
é que começamos!
Para alguma coisa eu sou a rainha das formigas... |
-
Para alguma coisa eu sou a rainha das formigas: posso planear, orientar,
determinar, restringir, direccionar, encaminhar, conduzir, guiar, delimitar e
até… enganar-me nos cálculos! Vocês são um bom povo, como o bom povo português!
Só têm de continuar a fazer o que vos exijo… Vamos lá ver, essas formigas
velhas que já não podem trabalhar toca a sair do formigueiro: vão para a
floresta e fiquem por lá -
deixem de ser um encargo para todos nós! E essas, que não sabem ainda fazer
nada, o melhor é serem criativas e porem-se a andar: de barco, de avião ou a pé
– mas, por favor, desamparem-me o formigueiro. Só cá quero as que já estão
habituadas a trabalhar e a comer pouco. O que produzimos não dá para todos:
vamos lá, vamos lá – toca a cirandar!
E logo o silêncio se
instalava: cabisbaixas, obedientes lá iam as formigas de casa para o trabalho e
do trabalho para casa -
tristes, descontentes, penalizadas, aborrecidas, mudas e caladitas como se a
voz se lhes tivesse fugido com o calor desmedido ou a chuva que se avizinhava.
... as mais novas começavam a partir |
A miúdo, iam definhando,
adoecendo, caindo pelas ribanceiras abaixo: as mais novas começaram a partir, a
procurar novas paragens, outros mundos, convencidas de que a sua rainha era tão
inteligente que não podiam competir com ela. Nem competir nem trabalhar ao lado
dela.
Só a cigarra continuava a
cantar saltitando de flor em flor com o seu violino sonoro que alegrava flores
e acalentava sabores de pólenes transacionados pelos insetos portadores de boas
notícias e de novas diferentes.
Vergadas sobre si mesmas, as
formiguinhas lá continuavam sem conseguirem levantar a cabeça, começando a
arrastar-se pelo chão, a deslizarem para junto de um grão de trigo, ou uma gota
de água. Já quase nem sequer água havia!
Até que um dia veio a rainha
e disse:
-
Minhas amigas, vou-me embora! Afinal eu estava enganada: vocês já nem conseguem
trabalhar quanto mais dar-me do vosso sustento. Vou para outras paragens - aqui, isto não me serve!
Quem sabe, a minha prima, lá do norte da Europa, me não arranja um resort –
cinco estrelas – para eu descansar este meu cérebro que tanto lutou por vocês. O
que eu gostava mesmo era de um lugarzinho em Bruxelas, com ar condicionado, a
fazer folhas de excel e a enganar-me! O que eu gosto de me enganar!!!
A cigarra, essa, sabe que todos os seres do mundo, um dia, serão iguais |
Eu realmente estava enganada
mas sabem, até foi divertido ouvir-vos gritar sem voz, ou cantar sem som.
Julgavam que eu tinha medo? Nunca me assustaram, nem mesmo quando gritaram à
minha passagem ou cantavam para me não deixarem falar ou riam para me calarem.
Vocês riam para não chorarem e eu continuava a fazer o que bem entendia. No dia
seguinte lá estavam, de cabeça baixa, a trabalhar, da floresta para o
formigueiro e do formigueiro para a floresta.
Infelizmente a formiga
rainha deixou por cá muitos seguidores e, então, a cigarra nunca conseguiu mais
do que alegrar o dia-a-dia daquelas pobres formiguinhas porque no fundo, no
fundo ela sabia que o trabalho é bom quando o seu fruto chega a todos e não se
amontoa só num celeiro. Ainda por cima, um celeiro duma rainha que continua a
dar ordens mesmo de longe, mesmo de outras bandas, mesmo de remotas paragens.
"Eu realmente estava enganada mas sabem, até foi divertido ouvir-vos gritar sem voz, ou cantar sem som. Julgavam que eu tinha medo?"
ResponderEliminarUma história repleta de encanto... não fosse a ironia, mais uma vez, a sublinhar o desencanto! Até quando tanto "encanto"?
Neste beco sem saída anunciada, vamos todos fazer de cigarras e gritar, até que a voz nos doa, o tudo/pouco que também sabemos sobre os reis do poder e as rainhas da ganância que nos andam a tramar?
ResponderEliminarTodos nós estamos cansados de ouvir ditar leis sobre leis, sem que disso tiremos algum proveito. Estamos cada vez mais parecidos com as formigas deste conto.
ResponderEliminarEste reino de engano e falsas promessas, necessita com urgência de cavaleiros/as com voz sonante, bom senso e elevados conhecimentos de gestão.
Assim, as formigas vão sentir-se muito mais confiantes e motivadas.
Também eu sou parte integrante das formiguinhas velhas e cansadas que durante toda uma vida trabalhou para encher o celeiro da comunidade e um dia, quando necessitasse, iria buscar a minha quota parte desse mesmo celeiro que seria mais que merecido. Também eu, tal qual estas mesmas formiguinhas sou mandada para a floresta e que apodreça por lá... Não preciso que me digam ao ouvido: "Estás velha, já não me serves para nada". Sinto-o a cada virar da esquina que é o mesmo que dizer a cada lei que é ditada. Até quando?
ResponderEliminarGostei Albertina, gostei muito.
Quem diria que uma velha, tão velha, tão velha ... é capaz de ideias brilhantes como tu tens! Eles bem tentam encurralar-nos na floresta mas havemos de saber subir a uma árvore e encontrar a nossa amiga cigarra.
EliminarBonito texto Albertina. Oxalá essa rainha tão má se afaste ràpidamente e que todos saibamos dar a volta a esta penúria.
ResponderEliminarUm talentoso reconto da velha fábula. Parabéns, Albertina.
ResponderEliminarEspero que as formigas rainhas, que não sabem cantar nem apreciam o canto, um dia, "morram de fartura".