(tempos
de guerra entre irmãos de raça)
É
sentado num banco de pedra maltratado por abandonos, junto à praia na Restinga
do
Lobito, Angola, que escrevo para uns amigos.
Restinga do Lobito |
As
águas da baía estão quedas, como sempre, e reflectem de azul com ligeira
distorção, as colinas do outro lado. São colinas pardas, moribundas, que só
ressuscitam de verde quando caem as raríssimas chuvadas. Aqui, é o deserto do
Namibe que se anuncia por perto.
Pelo
meio do canal, regressam ao cais, em remadas mais ou menos cadenciadas, algumas
chatas de pescadores. Não sei se trazem peixe, mas um deles vem a cantar. Ou a
chorar? É que, em Angola o rir e o chorar, muitas vezes, confundem-se.
Uma garça branca |
Aqui
mesmo à minha frente, uma garça branca de patas mergulhadas no arfar da maré
decidiu quedar-se como estátua, esquecida dos céus por algum tempo. Mas não
tardará a procurar neles o seu refúgio e o seu destino.
Além,
onde o areal se alarga, alguns miúdos brincam em correrias desajeitadas,
desengonçados em pernas sem formas porque as suas barrigas andam sempre cheias
de pouco ou mesmo de nada.
O
sol está nas minhas costas. Não consigo vê-lo devido ao tufo de casuarinas que
se interpõem. Mas sei que já está muito baixo no horizonte e adivinho que,
neste momento, é uma enorme bola de fogo por entre nuvens de calor.
As
colinas à minha frente começam a tomar agora uma tonalidade arroxeada e,
daquela que
é a mais alta, emerge o farol de alvenaria branco, grosso como
tronco de embondeiro, envolvido numa solidão árida e fria. A seu lado, uma
pequenina casa térrea de uma porta só e de uma janela só humaniza a desolação.
Fico a olhá-la como se visse nela a razão dum equívoco e um enigma por
decifrar. É que ela foi ninho do meu avô há mais de oitenta anos!
...envolvido numa solidão árida e fria |
E
vem-me à lembrança, naquele retrato de família exposto em casa dos meus pais, esse
velho ao lado da minha avó que nunca por aqui andou… Figura soberba, fronte de
homem inteligente, bigode farto e na boca e nos olhos a expressão enigmática de
quem, em alguma parte deste mundo que foi aqui, ficou preso à vida por um
novelo de cumplicidades.
Imagino-o,
a cada pôr do sol, a subir ao topo do farol de mecha acesa na mão para atear a
lanterna e, depois, duma forma mais difusa, parece que o vejo descer e entrar
no casebre de mecha apagada e, a convite do crepúsculo, agarrar-se à sua
concubina negra e fazer amor com ela …
Neste
instante, atrás de mim, uma voz tímida interrompe-me a visão do meu avô e
suplica:
–
Amigo! Amigo! Dá só cem!...
Viro-me
e encaro com uma criança sem futuro. E perguntei-lhe:
–
Para que queres tu o dinheiro?
Tenho fome! |
–
Tenho fome! – respondeu o miúdo pousando a mão na barriga inchada.
–
O teu pai? – perguntei-lhe como que a mandá-lo para casa.
–
Os bandidos mataram, lá no Huambo!
–
E a tua mãe?
O
miúdo não responde.
Pego
numa nota de cem mil kwanzas e meto-lha na mão.
Sem
agradecer, o garoto dá-lhe de correr e, negrinho que é, logo desvanece na
penumbra da praia.
Levanto-me
e dirijo-me para o automóvel. Ligo a telefonia que emite um noticiário que ouço
com atenção. Acabou sem falar de Portugal, mas saiu uma grande notícia:
‘
Fontes fidedignas acabam de divulgar a descoberta em Angola do maior poço de
petróleo do planeta ao sul do equador…’
Desligo
a telefonia. Lá longe, na praia, os miúdos festejam a esmola que lhes dei.
Entretanto,
o farol lança o seu primeiro clarão. A garça parece ter entendido o sinal
porque se elevou nos céus, procurando rumo.
Também
os passaritos parecem ter entendido o sinal porque abandonaram o chão e
recolheram às copas das árvores.
Os
miúdos, esses vão continuar na praia. Até quando…eles não sabem porque ninguém
lhes diz.
A
não ser que um dia eles, por si mesmos, comecem a entender que alguém nesta
terra – queira ou não queira o papão – terá que erguer no topo de cada colina um
farol que lhes guie os seus destinos, como faz aos marinheiros aquele que foi,
há muitos, muitos anos, o farol do meu avô!
Lobito
(Angola) – 22/6/97
Tibério Paradela©2013,Aveiro,Portugal
Evoluir congratula-se com a presença dum novo colaborador e deseja que Tibério Paradela seja um habitual frequentador deste blogue fazendo dele mais uma montra da sua escrita. Que se sinta bem entre nós!
ResponderEliminarDescrever como quem pinta, recordar como quem viveu, sentir como quem se empenha: e estes são os ingredientes do prazer da escrita e da leitura. Fico à espera de mais!
ResponderEliminarEscrita arejada, limpa, de sensibilidade desperta ao meio e às pessoas.
ResponderEliminarQue bom tê-lo por aqui Tibério Paradela!!!
ResponderEliminar"Angola, a descoberta do maior poço de petróleo do planeta ao sul do equador"
"os miudos, esses vão continuar na praia. Até quando...eles não sabem porque ninguém lhes diz".
Ao que julgo saber, a realidade de 1997 é a mesma em 2013.
Gostei deveras deste texto pela sensibilidade com que descreveu o que ainda lhe está bem presente no seu espirito.
Espero e desejo ver mais textos seus.
Obrigada
É sempre um enorme prazer um novo colaborador no Evoluir: certeza de que continuamos vivos e a ser lidos. Um texto muito bem delineado: uma recordação de há muito tempo que quase sangra de tanta vida que emana.
ResponderEliminarA felicidade vivida e a nostalgia de terras de África são evidentes neste belo e inteligente texto.
ResponderEliminarQue lindo texto. Ao lê-lo, passaram diante dos meus olhos aquelas imagens que devem ter uma beleza sem par. Obrigada ao autor por me ter transportado aonde eu nunca fui.
ResponderEliminarBenvindo Tibério. Gostei muito deste teu texto.
ResponderEliminarÉ bom quando o contacto com a natureza nos traz recordações e nos faz divagar.
Cá ficamos à espera de mais.
Bela descrição repassada de sentimentos! A nostalgia da infância, a homenagem ao avô, ... Já se vão acendendo aqui e ali umas luzinhas rebeldes. Quando ganharão força para se imporem como faróis, "queira ou não queira o papão"?
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