terça-feira, 8 de outubro de 2013

Lenda do galo de Barcelos

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação


Virgínia Rafael 

Certa noite, um forasteiro, vindo do centro de Portugal, a caminho da Espanha, chegava a Barcelos.
Que cidade bonita!
- Que cidade bonita! Um castelo, uma bela igreja a enamorar-se do rio, um largo com bela
Torre! Cidadezinha simpática!
À medida que calcorreava a cidade, espantava-se com a sua beleza e com a sua pacatez.
- Tantas mulheres de fato de treino numa azáfama! Para onde irão? Algumas andam tão depressa que se fossem comigo, num instante nos púnhamos em Espanha.
- Ó miúda queres fazer-me companhia?
- Pensas que estou para te aturar, ó pedinte!
- Lá pedinte até pareço! Bolas! Então ela não vai para a Espanha?!
Passa por mais umas mulheres com o mesmo passo da primeira.
- Ó miúdas! Posso ir convosco?
- Ó miúdas! Posso ir convosco?
As mulheres olham-no com desdém.
- Ai! Este parvo pensa o quê?
- Para a Espanha não é por aí acima?
- Por aí acima e por aí abaixo! Estica-te muito e os nossos maridos…
- Vou segui-las. Elas de certeza que vão para a Espanha.
O forasteiro seguiu-as sem fôlego, tal era a marcação de passo das mulheres.
- Irra! Estas devem ir para além de Santiago de Compostela!
As mulheres vão olhando para trás com cara de poucas amigas. Uma delas pega no telemóvel e telefona ao marido.
Cinco minutos depois chega um carro com cinco homens.
- Ouve lá! Tu pensas que estás onde? A meteres-te com as nossas mulheres! Isto é uma cidade pacata.
- Não! Não! Por favor, eu não seria capaz! Eu pensei…
- Pensaste o quê? Achas que tenho cara de parvo!
- É dar-lhe já uma ensinadela! Desfaço-te a cara. Está um gajo sossegado a ver a bola enquanto elas andam juntas a ver se emagrecem e aparece um imbecil a segui-las?! Tem um tipo de deixar o jogo a meio…
- Eu pensei…

O homem  amarra o peregrino pelo braço e começa a sacudi-lo.
- Tu não pensas nada…
- Então que se passa aqui?
Passa o carro da polícia. Saem dois polícias e dirigem-se ao grupo.
- Então que se passa aqui?
- Ó sr. Polícia, eu venho em paz!
- Em paz! Eu dou-te a paz!
- Sr. Polícia, este homem começou a perseguir-nos. Com uma treta de Espanha. Como se não se soubesse que Espanha é para cima. Fiquei logo desconfiada.
Exaltados os ânimos, gera-se uma confusão. Empurra daqui, empurra dali. Bofetada a um, bofetada a outro. Os polícias chamam reforços.
- Todos para a esquadra.
Conferenciam os polícias, continuam a discutir homens e mulheres e o forasteiro a um canto sem perceber o que se passa)
- Não vais mais para a rua, ouviste?
- Já agora! Então tu deixas de ver futebol.
- Ele tem razão. Ficas também em casa que ficas muito bem.
- Olha que isto? Não faltava mais nada. Sabes o que se vai comemorar? Sabes? O 25 de Abril, meu menino. Isso foi tempo…
O polícia dirige-se ao forasteiro:
- Ó homem! Trata de te preparar que vais passar aqui a noite.
Levem-me à presença dum juíz
- Mas eu não fiz nada de mal. Levem-me à presença de um juiz. Eu tenho de seguir caminho.
- Achas? O Sr. Dr. Juiz que está hoje na cidade numa grande confraternização com gente da alta.
- Mas eu não fiz nada de mal. Levem-me à presença de um juiz. Eu tenho de seguir caminho.
Já os homens e as mulheres tinham ido para as suas casa e os polícias sem saber o que fazer meteram o homem no carro e lá foram ao juiz.
Estava o juiz numa grande casa com um belo jardim. Em frente à casa evidenciava-se uma forca. Os convidados surpreendidos começam a aproximar-se, pois não é costume estas coisas da justiça serem logo tratadas. 
- O que te deu para os mandares vir?
- A querida nem imagina a história! Absolutamente insólita, insólita!
- Ui o homem é um pé rapado!
- Sou licenciado, mas estou desempregado.
- Por que razão vai para Espanha?
- Então! À procura de novas oportunidades, as daqui não dão para nada. A vida é mais barata, a gasolina…´
- Bem eu não me queixo! Não devia ajudar o país a crescer? Grande português! É preciso sacrifício…
- Sacrifícios são o que mais tenho feito.
- Ó querido! Apesar desse ar, vê-se que é um jovenzinho com muito para dar.
- Sr. Dr. Juiz, eu só quero seguir meu caminho.
«As galinhas andam à solta»
- Seguisse e não importunasse as mulheres! Segundo o código civil, no artigo 3º, alínea a) e depois de ter saído um artigo num jornal cá da terra «As galinhas andam à solta» - artigo que feriu os passos de muitas mulheres e o bom nome de muitos homens – nós temos de aplicar a justiça.
- Ora. Põem-no ali na forca esta noite, bem atadinho. Amanhã logo se verá!
- Boa ideia. Assim se dirá amanhã que fiz justiça e, hoje, posso comer aquele galo assado maravilhoso que estava previsto abrir nesta hora.
- Garanto-vos que daqui a cinco minutos me deixareis ir em paz.
- Porquê?
- Porque esse galo cantará à meia noite e provará a minha inocência.
- Como quer ele arranjar emprego? Onde é que ele terá tirado a licenciatura? – pensa o juiz com os seus botões.
Colocam o forasteiro na forca, aprisionado.
- Desculpa lá, mas eu sou supersticiosa. Ninguém, corta esse frango. Só faltam dois minutos para a meia noite. Bem dizia a Maya que eu esta semana ia ter uma situação surpreendente. – murmurou.
Meia noite. O galo cantou. 
Fui avaliado por todos pelo meu aspecto e não pelo que sou.
O juiz corre para a forca e liberta o forasteiro, mandando-o seguir o seu caminho em paz.
- Fui avaliado por todos, - mulheres, homens, polícias, senhores e senhoras da alta, - pelo meu aspecto e não pelo que sou. Agora pergunto-lhe eu como pode este meu país ser lugar de futuro para um jovem que veio em paz e só a paz procura? A verdade está onde muitas vezes não imaginamos e esse galo foi a prova disso.


6 comentários:

  1. Mais um jovem impelido a procurar noutro país o que lhe é negado neste Portugal; uma sociedade onde a aparência continua a sobrepor-se à essência; um drama provocado por mulheres convencidas e maridos saudosos da velha ordem... Ainda bem que o galo voltou a cantar - e cantou muito bem através da caneta da Virgínia Rafael. Obrigada, Virgínia.

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  2. Uma lenda recreada de uma forma muito interessante e com a qualidade a que a Virgínia nos habitou. Gostei sobretudo dos homens a defender as suas "damas" e a querer fazê-las regressar a uma época de má memória quando a casa era para as mulheres e a rua para os homens. Mas gostei também duma crítica sub-reptícia que se divisa na caminhada dolorosa do jovem para fora do seu país e duma justiça que só actua quando os milagres acontecem. País miudinho este onde as lendas continuam actuais. Parabéns, Virgínia. Gostei muito

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  3. A lenda, portadora de saber mítico e simbólico, a escorrer para o preconceito e para o anátema cego em que nos fazem viver.
    Quem diria que o galo de Barcelos ainda teria oportunidade de ser justiceiro numa terra onde a "justiça é cega" e só vemos injustiças?

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  4. Gostei muito de ler este texto. Como disse a Albertina as lendas estão sempre atuais. Gostei.

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  5. Uma lenda repleta de saberes e de verdades, infelizmente, tão atual. Felizmente, muito bem contada.

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  6. À medida que ia lendo, as imagens dos acontecimentos iam desfilando no meu cérebro. Mas... não é que isto (infelizmente) é mesmo real? Gostei muito. Obrigada Virginia Rafael.

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