Fernanda Reigota
Quando os sete anões
chegaram a casa, cansados do trabalho, estacaram o passo, perante a visão da
Branca de Neve. Como eram cultos, sabiam muito bem quem ela era. Por educação,
perguntaram-lhe o que fazia ali.
– Sabemos que é
sobejamente conhecida na Europa, depois que os irmãos Grimm
fixaram em livro a
sua história da tradição oral alemã. Mas não entendemos o que faz em nossa
casa, embora pareça muito mais arrumada.
Não entendemos o que faz em nossa casa |
– Descansem que não me
enganei. Antes de entrar, li os vossos nomes: Sabichão, Feliz, Zangado, Soneca,
Dunga, Atchim e Dengoso. Venho dar-vos aulas, ou pensam que o programa é para
andar a esticar uma eternidade? Claro que só preciso de três alunos. Amanhã, o
Pê Feliz, o Gás Sabichão e o Pau Zangado não vão trabalhar para os mineirostérios. Mas tu, Gás Sabichão,
não tragas a Luisinha Discípula! Ela serve muito bem é para decorar mesas de
conferências de imprensa. Tu depois lá lhe passas as ordens.
Soneca Limas Pato, Dunga Cristas, Aguinar Mota, Atchim Paulo.... |
E continuou, acrescentando
que, para começar a poupar, o Soneca Limas Prato, o Dunga Cristas Aguinar Mota,
o Atchim Paulo Cruz Marques e o Dengoso Miguelito Poisares iriam trabalhar num
único mineirostério. Caso os
assessores nomeados não tenham lugar, que fiquem em casa. Sempre se poupa
alguma coisa pagando-lhes só o magro ordenado.
Branca de Neve tinha umas
chamadas em linha e foi sentar-se na cama que havia preparado, juntando três
camas dos anõezinhos. Recostou-se e passeou o olhar pela mais recente
autoestrada de tráfego digital rodoviário, que passava mesmo ao lado da casa
dos sete anões. Observou que não havia trânsito. A PPP que a havia construído,
sabiamente decidira que, sem carros, a manutenção ficava a custo zero. E tudo o
que fosse a custo zero para a PPP era negócio. E aquele sossego oferecia-lhe
segurança absoluta de não ser perturbada nem encontrada. A sua missão era
secreta, à semelhança de outras que já desenvolvera nalguns países despesistas.
Cada um dos sete anões
procurava agradar à Branca de Neve: puseram-se a arrumar a
casa, como nunca
tinham feito, cozinharam comida alemã, para lhe arrancar um leve distender de
lábios, chegando mesmo a montar vigilância no bosque, não viesse algum mendigo
perturbá-la.
Cada um dos sete anões procurava agradar à Branca de Neve |
O Pê Feliz e o Pau Zangado
até segredaram que, desde pequenos, sempre tinham tido o sonho de privar com
personagem tão distinta. Era uma honra, para eles, serem seus alunos por uma
manhã. Estavam dispostos a tudo assimilarem e nada questionar.
Ao outro dia, os três
anões apresentaram-se para as aulas bem cedinho. Branca de Neve, sempre com o
mesmo uniforme, permitindo-se apenas variar a cor, começou por uma apresentação
genérica da matéria. As condições gerais estavam estipuladas e escritas. Nessa
matéria já tinham dado provas de terem consciência da sua periférica pequenez e
consequente inevitabilidade da austeridade. Mas falhavam muito nos pormenores.
Ó Pê Feliz, foste muito frouxo... |
– Ó Pê Feliz, foste muito
frouxo quando sugeriste a emigração. Vê lá como ages, porque eu, na Alemanha,
só quero os melhores investigadores das vossas universidades. Nas áreas
científicas de ponta, baixa-lhes as bolsas ou atrasa o pagamento uns bons
meses. Assim, eles emigram e, depois, lá fazemos a seleção. Aos outros,
sugeres-lhes que descubram novamente os novos mundos do vosso tempo de glória.
Não tenho paciência para ter de impedir hordas de Vândalos de se transformarem
em emigrantes a baterem-me à porta.
– Sim, vou fazer o meu
melhor e focar-me nos objetivos, para ganharmos o jogo – anuiu Pê Feliz.
– E tu, Pau Zangado, vê lá
se deixas a conversa de estares ao lado dos reformados e não
pisares traços
vermelhos. Sabes tão bem quanto eu que não podem ter o estômago satisfeito. Têm
de ter preocupações, pouco comer e poucos medicamentos, para não pensarem e… o
resto dos procedimentos vêm no anexo. Têm de o rever.
Pau Zangado, deixa os reformados |
– Sim, vou fazer o meu
melhor e focar-me nos objetivos, para ganharmos o jogo – anuiu Pau Zangado.
– Gás Sabichão, para ti,
uns reparos positivos: aprendeste a falar pausadamente para dares a ilusão de
que estás empenhado em que entendam os altos desígnios da pátria e como
alcançá-los; fazes bem em deixares reinar a confusão sobre os cortes de
pensões, sobre os despedimentos, sobre o aumento das horas de trabalho. Assim,
instalas o medo e depois aceitam o que vier, sem protestarem. Alguma coisa que
lhes deixes vai criar a ilusão de não ter sido tão mau como esperavam.
Mas ainda há muito
trabalho pela frente.
Branca de Neve ajeitou as
abas do seu casaco-colete e começou a lição.
– Certamente ouviram a
minha história, em pequenos, e não esquecem que a primeira coisa que eu fiz na
vossa casa foi arrumá-la, quando o caçador me perdoou e eu me escondia da minha
sorte madrasta. Pois, agora a história repete-se. Impõe-se arrumar novamente a
casa, para vocês se dedicarem exclusivamente a pagarem-me a dívida das
autoestradas, dos estádios inúteis, dos submarinos para os quais não têm
dinheiro nem para o combustível... É este o objetivo. Quiseram fazer grandes
negociatas para alimentar o tacho da corrupção e isso é convosco. Não está na
tradição do meu povo imiscuir-se com nenhuma pátria soberana: nunca o fizemos,
não o faço e nunca o farei. Eu só vos exijo que paguem o que os credores vos
emprestaram.
Também vos lembro que,
para poderem pagar a dívida com algum sossego, os bancos — e as suas associadas
como as parcerias, mesmo as escandalosas como as vossas — são intocáveis: têm
de estar tranquilos e a fazerem bons negócios. Não se esqueçam: o desemprego
leva qualquer um a aceitar metade do vencimento e a trabalhar mais. Na saúde
pode haver boas poupanças: os medicamentos para doenças incuráveis é
desperdício. E também nas escolas: ponham mais alunos por turma, acabem com os
psicólogos nas escolas, os meninos que não tenham manias, problemas sempre
houve. Ah! E desencorajem a solidariedade…
O Pê Feliz lança e com recuos e avanços |
Neste momento Gás Sabichão
atreveu-se falar:
– Esses pormenores, eu sei
tratar deles. O Pê Feliz lança isco e com recuos e avanços, vamos mesmo
avançando. Eu já entendi, e não acho mal, que primeiro temos de pagar a dívida,
porque os credores assim querem. Falo-lhes no Benfica, falo-lhes na chuva e
eles até ficam admirados com a minha sensibilidade para os seus verdadeiros
problemas. Depois, quem ficar à frente deste barco ingovernável que peça mais
dinheiro emprestado… Mas eu estou preocupado é com a Branca de Neve. Como temos
de ir dar continuidade a tudo o que foi dito, não tem medo de ficar aqui
sozinha uma tarde inteira? Não aparecerá por aí alguém a mando da sua madrasta?
– Ó Gás Sabichão, tu
pensas que sou ingénua? Eu roubei-lhe o espelho antes de ela mandar o caçador
matar-me! Está neutralizada.
À noite, quando voltaram
todos cansadinhos dos mineirostérios,
os anões encontraram Branca de Neve num caixão transparente. Tudo estava a
acontecer como manda a tradição: tudo indicava que a madrasta malvada tinha
mandado alguém envenenar a Branca de Neve e agora ela poderia estar a dormir
durante décadas, pensavam os anões.
Estou apenas a dormir um sono neurótico |
Os sete anõezinhos
resolveram que velariam devotamente a sua amiga, enquanto ela não acordasse.
Alguns ficariam sempre em casa: poderia ela precisar de alguma coisa, quando o
seu príncipe chegasse. E à noite dormiriam todos ao lado da Branca de Neve.
Com a emoção, Atchim deu
um espirro e das mãos da Branca de Neve saiu um minúsculo papel, onde se lia:
“Estou apenas a dormir um sono neurótico. O cavalo que transportará o príncipe
que me beijará chama-se Eleição. Entretanto, vão sendo examinados
periodicamente e não mudo o número de exames, nem as metas. Assim, no futuro, terão
de continuar a pagar-me empréstimos! Continuo sempre vigilante. Depois
dar-vos-ei a última lição.”
Fernanda Reigota ©2013,Aveiro,Portugal
Com uma aula de tal requinte é difícil não ficar impressionado pela lucidez, pelo pragmatismo, pela eficácia e pela autoridade. O estilo, bem à medida da autora, sendo irónico, não deixa de ser profundo tocando nas feridas, com tal jeito, que as deixa a sangrar. Uma lição sobre Liderança Política no seu melhor. Só lamento, em defesa dos direitos da mulher, que a Luisinha tenha sido promovida a vaso de flores. Em jeito de compensação adorei o nome do cavalo. Genial.
ResponderEliminarEu bem que andava desconfiada da Branca de Neve - aquela historia de que estava à espera do Príncipe nunca me convenceu... Já regressou e em força - pudera, com os alunos que arranjou só não dá ordens quem não quiser! Não se fala aqui da Bruxa Má - como é, será que a censura regressou e transformaram a história de forma a darem todo o protagonismo à Branca de Neve? Por favor procurem a Bruxa Má para verem se ela adormece a menina de vez... Adorei, Fernanda, está soberbo!
ResponderEliminarIsto não é quem quer é quem sabe.
ResponderEliminarA ironia também é uma arma e tu Fernanda sabes fazer bom uso dela. Como sempre a classificação é ótima.
Ao ler este conto tão verdadeiro e sarcástico, fiquei muito desiludida com a história que me contavam em criança e que, por sua vez, também a contei aos meus filhos. E eu a pensar que a Branca de Neve era aquela criatura muito bonita, muito esbelta que só praticava o bem sem receber nada em troca...
ResponderEliminarTrista inocência...
Adorei Fernanda.
Realmente a tua imaginação não tem limites.
Coitada da Branca de Neve que nem com o beijo do Príncipe acordou. E a bruxa? teve a sorte de arranjar uns alunos obedientes em tudo.Será que não é encontrada para lhe dar um corretivo? A tua imaginação não tem limites. Gostei muito de ler este texto.
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