EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para
publicação
... o sorriso pintado na cara |
Marlin era um palhaço. Não no
significado depreciativo, mas profissional: era um palhaço, que deixara de
trabalhar no circo e agora aparecia em festas de crianças, com o seu fato largo
de várias cores, o nariz vermelho e o sorriso pintado na cara. Gostava do que
fazia e esforçava-se para estar sempre bem disposto e brincalhão, mesmo que,
ultimamente, o sorriso fosse meramente um adorno. Por dentro, Marlin perdera a
vontade de sorrir desde que a mulher, Coral, chegara a casa com os resultados
dos exames médicos. As palavras leucemia, radioterapia e quimioterapia entraram
naquela casa como se fosse uma tempestade. Apenas o pequeno Nemo, na altura com
dois anos, estava alheio às possíveis implicações da doença da mãe.
Marlin esforçou-se o mais possível para
se manter junto da esposa, vendo-a a definhar e a ter de se mostrar sempre bem
disposto e alegre. Por dentro estava com o ego estraçalhado, apenas um
fragmento do Marlin que antes fora, um fragmento de homem que, um dia, recebeu
a notícia, cuja esperança de não receber alimentara nos últimos dois anos: Coral
já não voltaria a casa. Marlin chegou a casa e agarrou-se ao filho, a chorar.
Agora eram só os dois.
Nemo tinha o sonho de ser jogador de futebol |
Dez anos passados, Marlin trabalha
agora num supermercado. Nemo tornara-se um rapaz esperto com a mania da bola,
como qualquer outro rapaz de 14 anos, independentemente do seu grau de
esperteza. Tinha o sonho de ser jogador de futebol numa grande equipa, mas o
pai tinha receio: aos 7 anos, o Nemo chegara a casa com dificuldade em
respirar. O médico dera as más notícias - naquela casa, eram sempre os médicos
que davam as más notícias, e o Marlin já estava a ficar farto: Nemo tinha asma.
Durante os anos que se seguiram, o rapaz foi parar às urgências do hospital
quase todos os meses, até que, recentemente, Marlin o proibira de jogar
futebol.
“Pai, não me podes proibir!”, berrou o
Nemo, no seu quarto, agarrado à bola, sem ter consciência de que o estava a
fazer exactamente no mesmo sítio onde o pai o abraçara quando a mãe tinha
falecido.
“Não, pai. É para o TEU bem, assim não
te precisas de preocupar!”
Discutiram durante algum tempo.
Quando, por fim, a casa ficou em silêncio, Marlin foi para a cama a pensar que
o assunto tinha ficado resolvido. O filho, no entanto, tinha outros planos.
Nessa noite não conseguiu dormir a pensar neles.
... o filho tinha fugido de casa |
Quando Marlin chegou a casa, no dia
seguinte, ele não estava. Esperou, preocupado, durante algum tempo, antes de
desatar a telefonar para os pais dos amigos do filho. Por último, rendeu-se à
evidência de que o filho tinha fugido de casa.
Contactou a polícia, que o informou de
que iria tomar conta da ocorrência, mas que não faria nada porque tinham
passado poucas horas desde o desaparecimento do rapaz. Marlin ouviu isto num
estado de nervos tal que desejou ainda ser palhaço para poder fingir estar
calmo e sorridente, mas a verdade é que começou a disparatar com o polícia. Parecia
estar a descarregar anos de raiva contida. O polícia pareceu entender. Afinal,
também era pai e compreendia. Marlin demorou algum tempo a se restabelecer,
depois pediu desculpas e foi para casa. Nessa noite não conseguiu dormir.
No dia seguinte, pegou numa fotografia
do rapaz, ligou para o emprego a dizer que não ia trabalhar e desatou a
calcorrear a cidade à procura de Nemo. Quando parou, por fim, já sem forças
para dar um passo, deu com uma senhora de idade. Mostrou-lhe a foto, tal como
tinha feito vezes sem conta naquele dia. Já não tinha nenhumas esperanças. A
senhora pegou na foto, aproximou-a da vista.
“Eu vi este rapaz, ainda hoje.”, disse
ela.
O coração de Marlin deu um pulo.
“Viu-a? Onde?”
“Pois. Esse é que é o grande problema…
esta memória já não funciona como antigamente.”
“Tente lembrar-se. Por favor.”
Dory, assim se chamava a senhora,
tentou, mas tentou mesmo, com toda a força. A memória dela era mais visual,
disse. Tal como se lembrara do rapaz por causa da fotografia, se voltasse ao
sítio, talvez se lembrasse onde o tinha visto.
“Podemos refazer os seus passos.”
Dory pensou um bocado. Podia. Afinal,
não tinha nada de importante para fazer, como qualquer outra senhora da sua
idade que vivesse sozinha. A companhia de Marlin até era bastante bem-vinda. Começaram
pela praça, passaram pelo café, atravessaram o parque onde deram de comer aos
patos. A Dory atravessava meia cidade todos os dias. Até era cliente do
supermercado onde o Marlin trabalhava, e onde lhe perguntaram a ele se já tinha
encontrado o filho. Marlin respondeu que não, mas tinha esperança que aquela
senhora solitária o ajudasse a encontrá-lo.
Quando passaram por um campo de
futebol, viram alguns rapazes a jogar. Nenhum era
o Nemo. Dory parou junto ao
campo e disse apenas: “Foi aqui que vi o seu filho. Estava a jogar com eles.”
Foi aqui com o seu filho! |
Marlin, mal ouviu estas palavras já
invadia o campo e parava o jogo. Os rapazes ficaram irritados, como se a
invasão tivesse sido num jogo oficial da primeira liga. Mas era por um bom
motivo.
“Estou à procura do Nemo. O meu
filho.”, disse Marlin.
“Isso não é aquele filme dos peixes?”,
perguntou um dos rapazes, que parecia o mais velho, cheio de acne.
“Isto é a sério.”
Marlin descreveu o filho. Nenhum deles
disse que o conhecia. Até que o mais pequeno deles se chegou à beira de Marlin
e lhe disse: “Eu sei onde ele está.”
Existiam casos de futebolistas que tinham asma |
Uma crise de asma tinha atirado o Nemo
para as urgências. Ele dera um nome falso. Quando viu o pai atirou-se a ele,
pedindo desculpa. O pai fez o mesmo. Se aquele era o sonho do rapaz, quem era
ele para o impedir? Levou-o a um especialista que o sossegou: desde que fosse
controlado, o desporto far-lhe-ia bem. Existiam casos de futebolistas que
tinham asma. Deu outros exemplos: a Rosa Mota era asmática, bem como o ciclista
Miguel Indurain e o tenista Nuno Marques.
“É isso que queres, Nemo?”, perguntou
Marlin.
Nemo respondeu apenas com um sorriso.
poi é,senhores e senhoras, não devemos matar os sonhos , quer sejam nossos ou não, e muitos menos os sonhos dos nossos filhos. mesmo que mutas vezes os achemos irrealizáveis. além disso, "quem corre por gosto não cansa".
ResponderEliminaré que nem sempre o que nós desejamos para eles corresponde àquilo que eles pretendem alcançar ...
Um pai superprotetor prefere proibir a procurar soluções em conjunto com o filho. Mas alguns, como Marlin, acabam por aprender que a melhor maneira de proteger os filhos dos perigos é ensiná-los. E, assim, a vida perspetiva-se por um novo ângulo em que a situação incapacitante controlada pode revelar um lutador que chega a conhecer os seus limites, as suas “Vinte mil léguas submarinas”.
ResponderEliminarQuando um pai sabe da sua profissão entende, como Merlin o fez, que nada melhor do que o diálogo para resolver problemas que a super-proteção pode originar.
ResponderEliminarUm texto em que não falta ingrediente nenhum e nos retrata aquilo a que os silêncios podem conduzir quando não são bem geridos. Este pai, não esqueçamos, era um palhaço que, como diz o autor, "pintava o sorriso na cara" e que abandonou a profissão de que gostava porque o filho precisava dele. Errar não é proibido, errar e persistir no erro isso sim, isso é defeito. Merlin, felizmente, é um homem de diálogo e de afetos.
O diálogo é a essência indispensável em qualquer relação. As diferenças de idade, de estatuto, de horário, seja o que for, nada justifica a falta de diálogo. Por vezes, os pais, que obviamente devem ensinar os filhos, querem dar tudo o que têm e sabem e esquecem-se, às vezes, de pequeníssimos pormenores. O amor,só, não chega.
ResponderEliminarConcordo contigo Zé Luis, o diálogo é indispensável. Mas por vezes o destino atraiçoa-nos e tornamo-nos um pouco egoístas. Devemos dar-lhes a cana e ensiná-los a pescar o peixe que quiserem. Mas... um final feliz para uma vivência que bem poderia ter outro desfecho...
ResponderEliminarEste texto é um retrato daquilo que se passa em tantas famílias e com tantos pais que pensam saber o que é melhor para os filhos; cometem erros, por vezes irreparáveis. Felizmente não foi este o caso. Gostei tanto de ler este texto.
ResponderEliminarÉ um facto os pais quererem sempre o melhor para os filhos; pena é que os filhos nem sempre estejam de acordo e isso não significa que estejam errados. O diálogo é importante mas a abertura para um entendimento mutuo é indispensável.
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