Virgínia
Rafael
Certa
noite, um forasteiro, vindo do centro de Portugal, a caminho da Espanha,
chegava a Barcelos.
Que cidade bonita! |
-
Que cidade bonita! Um castelo, uma bela igreja a enamorar-se do rio, um largo
com bela
À
medida que calcorreava a cidade, espantava-se com a sua beleza e com a sua
pacatez.
-
Tantas mulheres de fato de treino numa azáfama! Para onde irão? Algumas andam
tão depressa que se fossem comigo, num instante nos púnhamos em Espanha.
-
Ó miúda queres fazer-me companhia?
-
Pensas que estou para te aturar, ó pedinte!
-
Lá pedinte até pareço! Bolas! Então ela não vai para a Espanha?!
Passa
por mais umas mulheres com o mesmo passo da primeira.
- Ó miúdas! Posso ir convosco? |
-
Ó miúdas! Posso ir convosco?
As
mulheres olham-no com desdém.
-
Ai! Este parvo pensa o quê?
-
Para a Espanha não é por aí acima?
-
Por aí acima e por aí abaixo! Estica-te muito e os nossos maridos…
-
Vou segui-las. Elas de certeza que vão para a Espanha.
O
forasteiro seguiu-as sem fôlego, tal era a marcação de passo das mulheres.
-
Irra! Estas devem ir para além de Santiago de Compostela!
As
mulheres vão olhando para trás com cara de poucas amigas. Uma delas pega no
telemóvel e telefona ao marido.
Cinco
minutos depois chega um carro com cinco homens.
-
Ouve lá! Tu pensas que estás onde? A meteres-te com as nossas mulheres! Isto é
uma cidade pacata.
-
Não! Não! Por favor, eu não seria capaz! Eu pensei…
-
Pensaste o quê? Achas que tenho cara de parvo!
-
É dar-lhe já uma ensinadela! Desfaço-te a cara. Está um gajo sossegado a ver a
bola enquanto elas andam juntas a ver se emagrecem e aparece um imbecil a
segui-las?! Tem um tipo de deixar o jogo a meio…
-
Eu pensei…
O
homem amarra o peregrino pelo braço e
começa a sacudi-lo.
-
Tu não pensas nada…
- Então que se passa aqui? |
Passa
o carro da polícia. Saem dois polícias e dirigem-se ao grupo.
-
Então que se passa aqui?
-
Ó sr. Polícia, eu venho em paz!
-
Em paz! Eu dou-te a paz!
-
Sr. Polícia, este homem começou a perseguir-nos. Com uma treta de Espanha. Como
se não se soubesse que Espanha é para cima. Fiquei logo desconfiada.
Exaltados
os ânimos, gera-se uma confusão. Empurra daqui, empurra dali. Bofetada a um,
bofetada a outro. Os polícias chamam reforços.
-
Todos para a esquadra.
Conferenciam
os polícias, continuam a discutir homens e mulheres e o forasteiro a um canto
sem perceber o que se passa)
-
Não vais mais para a rua, ouviste?
-
Já agora! Então tu deixas de ver futebol.
-
Ele tem razão. Ficas também em casa que ficas muito bem.
-
Olha que isto? Não faltava mais nada. Sabes o que se vai comemorar? Sabes? O 25
de Abril, meu menino. Isso foi tempo…
O
polícia dirige-se ao forasteiro:
-
Ó homem! Trata de te preparar que vais passar aqui a noite.
Levem-me à presença dum juíz |
-
Mas eu não fiz nada de mal. Levem-me à presença de um juiz. Eu tenho de seguir
caminho.
-
Achas? O Sr. Dr. Juiz que está hoje na cidade numa grande confraternização com
gente da alta.
-
Mas eu não fiz nada de mal. Levem-me à presença de um juiz. Eu tenho de seguir
caminho.
Já
os homens e as mulheres tinham ido para as suas casa e os polícias sem saber o
que fazer meteram o homem no carro e lá foram ao juiz.
Estava
o juiz numa grande casa com um belo jardim. Em frente à casa evidenciava-se uma
forca. Os convidados surpreendidos começam a aproximar-se, pois não é costume
estas coisas da justiça serem logo tratadas.
-
O que te deu para os mandares vir?
-
A querida nem imagina a história! Absolutamente insólita, insólita!
-
Ui o homem é um pé rapado!
-
Sou licenciado, mas estou desempregado.
-
Por que razão vai para Espanha?
-
Então! À procura de novas oportunidades, as daqui não dão para nada. A vida é
mais barata, a gasolina…´
-
Bem eu não me queixo! Não devia ajudar o país a crescer? Grande português! É
preciso sacrifício…
-
Sacrifícios são o que mais tenho feito.
-
Ó querido! Apesar desse ar, vê-se que é um jovenzinho com muito para dar.
-
Sr. Dr. Juiz, eu só quero seguir meu caminho.
«As galinhas andam à solta» |
-
Seguisse e não importunasse as mulheres! Segundo o código civil, no artigo 3º,
alínea a) e depois de ter saído um artigo num jornal cá da terra «As galinhas
andam à solta» - artigo que feriu os passos de muitas mulheres e o bom nome de
muitos homens – nós temos de aplicar a justiça.
-
Ora. Põem-no ali na forca esta noite, bem atadinho. Amanhã logo se verá!
-
Boa ideia. Assim se dirá amanhã que fiz justiça e, hoje, posso comer aquele
galo assado maravilhoso que estava previsto abrir nesta hora.
-
Garanto-vos que daqui a cinco minutos me deixareis ir em paz.
-
Porquê?
-
Porque esse galo cantará à meia noite e provará a minha inocência.
-
Como quer ele arranjar emprego? Onde é que ele terá tirado a licenciatura? –
pensa o juiz com os seus botões.
Colocam
o forasteiro na forca, aprisionado.
-
Desculpa lá, mas eu sou supersticiosa. Ninguém, corta esse frango. Só faltam
dois minutos para a meia noite. Bem dizia a Maya que eu esta semana ia ter uma
situação surpreendente. – murmurou.
Meia
noite. O galo cantou.
Fui avaliado por todos pelo meu aspecto e não pelo que sou. |
O
juiz corre para a forca e liberta o forasteiro, mandando-o seguir o seu caminho
em paz.
-
Fui avaliado por todos, - mulheres, homens, polícias, senhores e senhoras da
alta, - pelo meu aspecto e não pelo que sou. Agora pergunto-lhe eu como pode
este meu país ser lugar de futuro para um jovem que veio em paz e só a paz
procura? A verdade está onde muitas vezes não imaginamos e esse galo foi a
prova disso.
Mais um jovem impelido a procurar noutro país o que lhe é negado neste Portugal; uma sociedade onde a aparência continua a sobrepor-se à essência; um drama provocado por mulheres convencidas e maridos saudosos da velha ordem... Ainda bem que o galo voltou a cantar - e cantou muito bem através da caneta da Virgínia Rafael. Obrigada, Virgínia.
ResponderEliminarUma lenda recreada de uma forma muito interessante e com a qualidade a que a Virgínia nos habitou. Gostei sobretudo dos homens a defender as suas "damas" e a querer fazê-las regressar a uma época de má memória quando a casa era para as mulheres e a rua para os homens. Mas gostei também duma crítica sub-reptícia que se divisa na caminhada dolorosa do jovem para fora do seu país e duma justiça que só actua quando os milagres acontecem. País miudinho este onde as lendas continuam actuais. Parabéns, Virgínia. Gostei muito
ResponderEliminarA lenda, portadora de saber mítico e simbólico, a escorrer para o preconceito e para o anátema cego em que nos fazem viver.
ResponderEliminarQuem diria que o galo de Barcelos ainda teria oportunidade de ser justiceiro numa terra onde a "justiça é cega" e só vemos injustiças?
Gostei muito de ler este texto. Como disse a Albertina as lendas estão sempre atuais. Gostei.
ResponderEliminarUma lenda repleta de saberes e de verdades, infelizmente, tão atual. Felizmente, muito bem contada.
ResponderEliminarÀ medida que ia lendo, as imagens dos acontecimentos iam desfilando no meu cérebro. Mas... não é que isto (infelizmente) é mesmo real? Gostei muito. Obrigada Virginia Rafael.
ResponderEliminar