Albertina
Silva Monteiro
Era uma vez uma
princesa que se chamava Bela. Bela só acreditava no amor e apenas vivia por
amor à sua família. E sonhava, sonhava tanto que parecia dormir enquanto
caminhava. E alheia aos outros, ouvia:
- Bela, és uma bela
adormecida…
Bela caminhava até ao castelo |
E Bela olhava, sorria
e continuava o seu caminho diário até ao castelo para buscar o seu filho – o
seu príncipe de dez anos. Na casa de Bela, um palácio de amor, como dizia o seu
rei, todos se sentiam personagens de uma história encantada; eles encantavam-se
uns aos outros. Era por isso. Eles eram tão felizes dentro daquele amor que despertaram
a inveja e a cobiça de uma bruxa má que decidiu terminar com a felicidade de
Bela.
No dia seguinte, ao
chegar ao castelo, Bela reparou que o seu príncipe não a esperava no sítio do
costume. Bela, como vivia num estado de graça permanente, não pensou em
feitiços ou bruxas más; então esperou. E esperou mais um pouco. Mas de repente Bela
sentiu uma picada bem no meio do coração, uma dor estranha, um vazio seco que
descia da garganta até ao coração; correu. Não sabia o que sentia mas sabia que
devia correr; ir ter com ele, o seu príncipe.
Aconteceu um grito. Porque
aconteceu um roubo. Uma bruxa má roubou-o, ouviu-se dos céus. Bela caiu. Depois
adormeceu.
Bela Adormecida
dormia profundamente. Caíra em sono profundo, cedera ao vazio no coração, à
impotência da magia, ao tempo que vagarosamente corria pela vida. Todos
choravam. Havia sido enfeitiçada pela bruxa má que se escondia na imensa
floresta negra protegida por ogres e fortes feitiços negros que impediam a
magia branca, tão lenta, impotente e diminuta, de a encontrar e resgatar o
príncipe da Bela adormecida, o único que a poderia despertar.
Tentaram despertá-la
com o beijo do rei, mas Bela adormecida dormia um sono profundo, um
sono assim:
fragmentos de um beijo e de um abraço, fragmentos de um lugar escuro, frio,
caras estranhas, fumos e cheiros nauseabundos; fragmentos de uma gargalhada,
uma corrida pelo jardim de erva verde-escuro, um lago com peixes dourados e
vermelhos; fragmentos de uma bruxa histérica, um ogre enorme e desconcertante;
fragmentos de uma luz negra agora inundada por uma luz branca; um trovão, uma
mão, duas mãos e uma é de criança, um beijo, um pedido, um vazio, um príncipe,
um príncipe que ri os seus dez anos. Bela adormecida quer o beijo do seu
príncipe que lhe foi roubado. Dorme Bela, dorme.
Bela dormia um sono profundo |
Dois anos depois, do
outro lado do mundo, numa floresta negra, vamos imaginar um lugar com quatro
paredes. Agora imaginemos um príncipe preso; apenas isso.
Dois anos depois, do
outro lado do mundo, numa floresta negra, prisioneiro de uma bruxa má o
príncipe está vivo: tem medo, vive calado, sente-se roubado. Mas o príncipe
espera; reserva as forças para o dia que terá que lutar para fugir - rumores de
uma princesa adormecida num sono profundo e eterno e que apenas poderá ser desperto
pelo beijo de um príncipe chegara aos ouvidos do prisioneiro de doze anos. Ele
espera pela magia e aguenta.
Nesse ano a magia
aconteceu. Fadas poderosas de um país longínquo, enternecidas pela
desgraça da
Bela adormecida, penetraram na floresta negra, arrasaram com os incontáveis ogres
e conseguiram encontrar o esconderijo da bruxa; a bruxa, agora sozinha, temeu a
morte e contou às fadas onde estava o príncipe. A bruxa má morreu.
O príncipe corria para salvar a sua Bela |
Quando o príncipe se
libertou daquelas quatro paredes tocou a face de uma das fadas e chorou. Chorou
muito. Chorou todo o caminho até casa. Chorou frio, chorou vazio, chorou
trovões, chorou dez anos, chorou onze anos, chorou doze anos, chorou tempo,
chorou dragões que o tocavam no ombro pela noite enquanto corria para casa,
para a beijar, para a despertar, porque disseram que só o beijo dele, apenas o
amor dele, a despertaria. O príncipe corria agora para salvar a sua Bela. O
príncipe nunca mais chorou.
Numa manhã do ano
seguinte, Bela dormia e a seu lado o rei choroso e sozinho, ouviram-se vozes
vindas de longe, vozes de alento, de alegria. Os passarinhos que embalavam o
sono de Bela deixaram de cantar, ouviram-se passos e um calor luminoso cobre a
cama de Bela: o príncipe havia chegado para a despertar. E num profundo
silêncio uma boca de criança beija a testa de sua mãe. Bela adormecida acordou.
Mãe.
Nem sempre as bruxas
más morrem. Nem sempre a Bela adormecida acorda. Nem sempre o príncipe encontra
o caminho até à sua princesa. Nem sempre há beijo. E o sono prolonga-se e nunca
acaba.
E para elas, as Bela
adormecidas, que dormem um sono profundo.
E para eles, o
Príncipes, que não conseguem beijar a sua princesa.
Que um dia encontrem
o seu final feliz.
FIM
Uma reflexão profunda sobre a falta de vida de uma mãe que "perdeu" ou a quem foi retirado um filho - seu príncipe encantando. Não consigo imaginar a dor de alguém que, por inúmeras circunstâncias, "perde" um filho e não consegue descobri-lo. Mas há situações que me fazem refletir - há crianças que são mais crianças que outras. Umas têm direito a numerosas e complexas buscas policiais; outras desaparecem "sem deixar rasto". Como em tudo na nossa vida há direitos que são só de alguns. Bem colocado o seu texto, Albertina: gostei muito da adaptação que fez duma Bela Adormecida a uma mãe adormecida (sem vontade de viver) à espera do seu Príncipe que, neste caso, felizmente, apareceu. Bem-haja pela sua colaboração
ResponderEliminarAlbertina gostei muito da adaptação que fez da bela adormecida dos meus tempos de menina. Gostei especialmente dos dois últimos parágrafos que são a realidade dos nossos dias, mas que nos falam de esperança e de amor .Obrigada por isso.
ResponderEliminarNem sempre há justiça.
ResponderEliminarNem sempre a justiça é justa.
Disse que a justiça é cega.
Nunca chegará a hora de ver?
Ótima adaptação de uma história tradicional.
ResponderEliminar"Chorou frio, chorou vazio, chorou trovões, chorou dez anos, chorou onze anos, chorou doze anos, chorou tempo, chorou dragões "
Que bela forma de dizer que a privação do amor é uma monstruosidade!
Gostei tanto de ler este texto. Faz-nos acreditar no amor, porque ele faz milagres. Obrigada pela participação e ao mesmo tempo levar-me ao mundo da magia, que vivi em criança.
ResponderEliminarMas que lindo texto de amor... e a reciprocidade é maravilhosa. Faz-me acreditar que nunca devemos desistir dos nossos sonhos. Adorei Albertina, sobretudo por ter acontecido um final feliz.
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