sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Branca de neve e os três anões

Fernanda Reigota

Quando os sete anões chegaram a casa, cansados do trabalho, estacaram o passo, perante a visão da Branca de Neve. Como eram cultos, sabiam muito bem quem ela era. Por educação, perguntaram-lhe o que fazia ali.
– Sabemos que é sobejamente conhecida na Europa, depois que os irmãos Grimm
Não entendemos o que faz
em nossa casa
fixaram em livro a sua história da tradição oral alemã. Mas não entendemos o que faz em nossa casa, embora pareça muito mais arrumada.
– Descansem que não me enganei. Antes de entrar, li os vossos nomes: Sabichão, Feliz, Zangado, Soneca, Dunga, Atchim e Dengoso. Venho dar-vos aulas, ou pensam que o programa é para andar a esticar uma eternidade? Claro que só preciso de três alunos. Amanhã, o Pê Feliz, o Gás Sabichão e o Pau Zangado não vão trabalhar para os mineirostérios. Mas tu, Gás Sabichão, não tragas a Luisinha Discípula! Ela serve muito bem é para decorar mesas de conferências de imprensa. Tu depois lá lhe passas as ordens.
Soneca Limas Pato, Dunga Cristas,
Aguinar Mota, Atchim Paulo....
E continuou, acrescentando que, para começar a poupar, o Soneca Limas Prato, o Dunga Cristas Aguinar Mota, o Atchim Paulo Cruz Marques e o Dengoso Miguelito Poisares iriam trabalhar num único mineirostério. Caso os assessores nomeados não tenham lugar, que fiquem em casa. Sempre se poupa alguma coisa pagando-lhes só o magro ordenado.
Branca de Neve tinha umas chamadas em linha e foi sentar-se na cama que havia preparado, juntando três camas dos anõezinhos. Recostou-se e passeou o olhar pela mais recente autoestrada de tráfego digital rodoviário, que passava mesmo ao lado da casa dos sete anões. Observou que não havia trânsito. A PPP que a havia construído, sabiamente decidira que, sem carros, a manutenção ficava a custo zero. E tudo o que fosse a custo zero para a PPP era negócio. E aquele sossego oferecia-lhe segurança absoluta de não ser perturbada nem encontrada. A sua missão era secreta, à semelhança de outras que já desenvolvera nalguns países despesistas.
Cada um dos sete anões procurava agradar à Branca de Neve: puseram-se a arrumar a
Cada um dos sete anões procurava
agradar à Branca de Neve
casa, como nunca tinham feito, cozinharam comida alemã, para lhe arrancar um leve distender de lábios, chegando mesmo a montar vigilância no bosque, não viesse algum mendigo perturbá-la.
O Pê Feliz e o Pau Zangado até segredaram que, desde pequenos, sempre tinham tido o sonho de privar com personagem tão distinta. Era uma honra, para eles, serem seus alunos por uma manhã. Estavam dispostos a tudo assimilarem e nada questionar.
Ao outro dia, os três anões apresentaram-se para as aulas bem cedinho. Branca de Neve, sempre com o mesmo uniforme, permitindo-se apenas variar a cor, começou por uma apresentação genérica da matéria. As condições gerais estavam estipuladas e escritas. Nessa matéria já tinham dado provas de terem consciência da sua periférica pequenez e consequente inevitabilidade da austeridade. Mas falhavam muito nos pormenores.
Ó Pê Feliz, foste muito frouxo...
– Ó Pê Feliz, foste muito frouxo quando sugeriste a emigração. Vê lá como ages, porque eu, na Alemanha, só quero os melhores investigadores das vossas universidades. Nas áreas científicas de ponta, baixa-lhes as bolsas ou atrasa o pagamento uns bons meses. Assim, eles emigram e, depois, lá fazemos a seleção. Aos outros, sugeres-lhes que descubram novamente os novos mundos do vosso tempo de glória. Não tenho paciência para ter de impedir hordas de Vândalos de se transformarem em emigrantes a baterem-me à porta.
– Sim, vou fazer o meu melhor e focar-me nos objetivos, para ganharmos o jogo – anuiu Pê Feliz.
– E tu, Pau Zangado, vê lá se deixas a conversa de estares ao lado dos reformados e não
Pau Zangado, deixa os reformados
pisares traços vermelhos. Sabes tão bem quanto eu que não podem ter o estômago satisfeito. Têm de ter preocupações, pouco comer e poucos medicamentos, para não pensarem e… o resto dos procedimentos vêm no anexo. Têm de o rever.
– Sim, vou fazer o meu melhor e focar-me nos objetivos, para ganharmos o jogo – anuiu Pau Zangado.
– Gás Sabichão, para ti, uns reparos positivos: aprendeste a falar pausadamente para dares a ilusão de que estás empenhado em que entendam os altos desígnios da pátria e como alcançá-los; fazes bem em deixares reinar a confusão sobre os cortes de pensões, sobre os despedimentos, sobre o aumento das horas de trabalho. Assim, instalas o medo e depois aceitam o que vier, sem protestarem. Alguma coisa que lhes deixes vai criar a ilusão de não ter sido tão mau como esperavam.
Mas ainda há muito trabalho pela frente.
Branca de Neve ajeitou as abas do seu casaco-colete e começou a lição.
– Certamente ouviram a minha história, em pequenos, e não esquecem que a primeira coisa que eu fiz na vossa casa foi arrumá-la, quando o caçador me perdoou e eu me escondia da minha sorte madrasta. Pois, agora a história repete-se. Impõe-se arrumar novamente a casa, para vocês se dedicarem exclusivamente a pagarem-me a dívida das autoestradas, dos estádios inúteis, dos submarinos para os quais não têm dinheiro nem para o combustível... É este o objetivo. Quiseram fazer grandes negociatas para alimentar o tacho da corrupção e isso é convosco. Não está na tradição do meu povo imiscuir-se com nenhuma pátria soberana: nunca o fizemos, não o faço e nunca o farei. Eu só vos exijo que paguem o que os credores vos emprestaram.
Também vos lembro que, para poderem pagar a dívida com algum sossego, os bancos — e as suas associadas como as parcerias, mesmo as escandalosas como as vossas — são intocáveis: têm de estar tranquilos e a fazerem bons negócios. Não se esqueçam: o desemprego leva qualquer um a aceitar metade do vencimento e a trabalhar mais. Na saúde pode haver boas poupanças: os medicamentos para doenças incuráveis é desperdício. E também nas escolas: ponham mais alunos por turma, acabem com os psicólogos nas escolas, os meninos que não tenham manias, problemas sempre houve. Ah! E desencorajem a solidariedade…
O Pê Feliz lança e com recuos e avanços
Neste momento Gás Sabichão atreveu-se falar:
– Esses pormenores, eu sei tratar deles. O Pê Feliz lança isco e com recuos e avanços, vamos mesmo avançando. Eu já entendi, e não acho mal, que primeiro temos de pagar a dívida, porque os credores assim querem. Falo-lhes no Benfica, falo-lhes na chuva e eles até ficam admirados com a minha sensibilidade para os seus verdadeiros problemas. Depois, quem ficar à frente deste barco ingovernável que peça mais dinheiro emprestado… Mas eu estou preocupado é com a Branca de Neve. Como temos de ir dar continuidade a tudo o que foi dito, não tem medo de ficar aqui sozinha uma tarde inteira? Não aparecerá por aí alguém a mando da sua madrasta?
– Ó Gás Sabichão, tu pensas que sou ingénua? Eu roubei-lhe o espelho antes de ela mandar o caçador matar-me! Está neutralizada.
À noite, quando voltaram todos cansadinhos dos mineirostérios, os anões encontraram Branca de Neve num caixão transparente. Tudo estava a acontecer como manda a tradição: tudo indicava que a madrasta malvada tinha mandado alguém envenenar a Branca de Neve e agora ela poderia estar a dormir durante décadas, pensavam os anões.
Estou apenas a dormir um sono neurótico
Os sete anõezinhos resolveram que velariam devotamente a sua amiga, enquanto ela não acordasse. Alguns ficariam sempre em casa: poderia ela precisar de alguma coisa, quando o seu príncipe chegasse. E à noite dormiriam todos ao lado da Branca de Neve. 
Com a emoção, Atchim deu um espirro e das mãos da Branca de Neve saiu um minúsculo papel, onde se lia: “Estou apenas a dormir um sono neurótico. O cavalo que transportará o príncipe que me beijará chama-se Eleição. Entretanto, vão sendo examinados periodicamente e não mudo o número de exames, nem as metas. Assim, no futuro, terão de continuar a pagar-me empréstimos! Continuo sempre vigilante. Depois dar-vos-ei a última lição.”


Fernanda Reigota ©2013,Aveiro,Portugal

5 comentários:

  1. Com uma aula de tal requinte é difícil não ficar impressionado pela lucidez, pelo pragmatismo, pela eficácia e pela autoridade. O estilo, bem à medida da autora, sendo irónico, não deixa de ser profundo tocando nas feridas, com tal jeito, que as deixa a sangrar. Uma lição sobre Liderança Política no seu melhor. Só lamento, em defesa dos direitos da mulher, que a Luisinha tenha sido promovida a vaso de flores. Em jeito de compensação adorei o nome do cavalo. Genial.

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  2. Eu bem que andava desconfiada da Branca de Neve - aquela historia de que estava à espera do Príncipe nunca me convenceu... Já regressou e em força - pudera, com os alunos que arranjou só não dá ordens quem não quiser! Não se fala aqui da Bruxa Má - como é, será que a censura regressou e transformaram a história de forma a darem todo o protagonismo à Branca de Neve? Por favor procurem a Bruxa Má para verem se ela adormece a menina de vez... Adorei, Fernanda, está soberbo!

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  3. Isto não é quem quer é quem sabe.
    A ironia também é uma arma e tu Fernanda sabes fazer bom uso dela. Como sempre a classificação é ótima.

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  4. Ao ler este conto tão verdadeiro e sarcástico, fiquei muito desiludida com a história que me contavam em criança e que, por sua vez, também a contei aos meus filhos. E eu a pensar que a Branca de Neve era aquela criatura muito bonita, muito esbelta que só praticava o bem sem receber nada em troca...
    Trista inocência...
    Adorei Fernanda.
    Realmente a tua imaginação não tem limites.

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  5. Coitada da Branca de Neve que nem com o beijo do Príncipe acordou. E a bruxa? teve a sorte de arranjar uns alunos obedientes em tudo.Será que não é encontrada para lhe dar um corretivo? A tua imaginação não tem limites. Gostei muito de ler este texto.

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