sexta-feira, 14 de junho de 2013

O AMIGO AFONSO HENRIQUES

EVOLUIR agradece ao autor o envio deste texto para publicação

Estamos a publicar textos subordinados à temática AMIGOS e AMIZADE. Colabore e remeta-nos o seu texto ou poema inédito para publicação. Ouse! A diversidade fortalece a amizade.  

José Carreto Lages

As elevações arredondadas dos velhos maciços de terreno obrigavam a que as casas, na maioria brancas, construídas ao longo do serpentear da velha estrada, em duas fileiras, se arrimassem umas às outras num “chega pra lá” como se da proximidade resultasse incómoda a vizinhança. O Passat, não se lamentava dos seus cinco ocupantes: eu e meu cunhado Zé Amaral, colado ao banco da frente esquerdo e atrás a Sãozinha, minha mulher, a Mila, minha cunhada e a comadre desta, a Tieta que desde que deixámos o aprazível local da boda não se calavam, numa contínua galhofeira, apenas interrompida pelas repetidas sugestões e ordens dadas para o banco da frente, ao condutor. Decidiram que o carro que seguia mais adiante era o dos realizados pais do noivo, o Dr. Francisco Carvalhosa e a sua mulher, Ana Cristina. Só que depois de uma rápida aproximação verificámos que não era o carro deles. E seguimos a estrada, numa vaga esperança de os alcançar. 
A noite estava estrelada e quente
A noite estava estrelada e quente, recortando a sua velada luz  o tamanho das casas, geralmente baixas, de um só piso ou de lojas com um piso superior para habitação, construídas no último meio século, fruto de alguma melhoria de rendimentos advindos do melhor desempenho da economia  e da remessa de divisas obtidas com o último surto da emigração. E a insípida voz metálica da menina do GPS continuava a tartamudear prescrições ao percurso da estrada que devíamos percorrer, em direcção à aldeia da Merceana, ditando ordens, para a direita e para a esquerda, numa confusa e patética indicação contraditória e alienante, o que nos levava a desdenhar e chacotear do seu comando, e a decidir parar na berma da estrada.
Á frente, a luz ténue dos médios de dois faróis denunciavam a estranha presença de alguém só, dentro de uma viatura estacionada, mas prestes a partir. Como se havia lido, uns duzentos metros antes, na placa da JAE, de anúncio e sentinela à entrada da povoação, estávamos em Arneiros, noite dentro, nas primeiras horas de 4 de Julho.
Depois de abrirmos o vidro da janela, adoçando a voz, demos as boas noites em direcção do ocupante da viatura, que nos pareceu um cavalheiro.
Numa efectiva apreensão e com justificado receio de que o carro iniciasse a marcha, saímos da nossa viatura, em posição lateral ao condutor da viatura estacionada, e, embora já adivinhando a resposta, perguntámos se estávamos no caminho correcto para a Merceana.
Não tardou o senhor a inquirir:
Querem ir para Merceana?
- Querem ir para a Merceana?
E logo, categórico, afirmou:
- Bem, estão perdidos e bem perdidos.
Não estranhámos nada a informação, porque dela suspeitávamos já. Queríamos era saber qual a direcção da estrada a seguir para o nosso estabelecido destino onde íamos passar o resto da noite no complexo habitacional e vitícola da Quinta de Arneiros do Sr. Dr. Francisco Carvalhosa.
E após uma pausa e com alguma hesitação:
- Conhecem a estrada para Torres Vedras?
Como respondemos que não conhecíamos, saiu do carro e continuou categórico:
- Então, estão mal – e como que a pensar se devia dizer mais:
- Bem… eu vou para lá. Sigam-me. Vamos subir uma colina bastante íngreme, mas sigam-me sempre.
O senhor, homem na casa dos sessenta anos, estatura média, de robusta compleição física, com cabelo curto e escuro, bem apessoado, retomou o volante do Mercedes creme e arrancou, em velocidade de quem conhecia bem a região, e nós seguimo-lo sempre, no nosso carro, para não perder de vista o seu contacto, descendo e subindo uma enrolada estrada totalmente desconhecida nos recantos mais profundos da memória de qualquer dos cinco que ocupávamos o interior da nossa viatura.
Nem o veludo da noite serena trazia conforto ao nosso desassossego e insegurança.
- Olha que o homem vai a fugir - ouviu-se do assento de trás.
E outra voz:
- Está a levar-nos para algum ermo, com uma cilada urdida por alguns capangas.
- Ele vai com pressa, vai fugir- dizia o Zé Amaral, ao meu lado.
- Olha que ele foge, acelera, senão perdemos o homem – diziam vozes quase em simultâneo.
- Perdidos e bem perdidos, disse o homem, - repetiu outra voz, no banco de trás, a rememoriar o que o senhor havia dito.
E, com o pé no acelerador, procurávamos não perder o Mercedes do nosso alcance.
Depois de vencermos a subida íngreme de um monte ermo, de velhas linhas muito arredondadas, como gigantesca abóbora, chegámos a um desconhecido lugar com casas de habitação onde não sentimos a presença de ninguém. Em frente, na base do monte, bruxuleavam tenuemente as luzes de um grande centro urbano, que se adivinhava ser a cidade de Torres Vedras. Então, com rumo à vista, julgámo-nos salvos.
O senhor parou o seu Mercedes e nós, pensando e aguardando que nos fosse dar novas informações, fizemos o mesmo logo à sua frente, para lhe agradecer o gesto de nos ter guiado como a estrela aos reis magos em Belém de há dois mil e tantos anos.
Parados os carros, de imediato, o senhor veio ter connosco, indicando-nos sentencioso:
- Estamos na Serra da Vila.
E logo, para saber o que dizer, colhia informação e perguntava:
É Torres Vedras.
- Estão a ver aquelas luzes lá em Baixo? É Torres Vedras. A cerca de dois quilómetros e meio daqui, descendo a estrada que trazíamos. Eu, sou Afonso Henriques e aqui é o lugar chamado Serra da Vila, onde habito desde que deixei de ser emigrante.
E depois, como que meio arrependido por alguma imprudência, pensativo, foi afirmando:
- Bem, eu não devia ter feito o que fiz, nem vocês me deviam ter seguido.
E continuava, a justificar-se e a avaliar o risco:
- Nos dias de hoje é arriscado fazer o que fiz, porque isto não se deve fazer, mas, pelo que vejo estou com boas pessoas. Para a Merceana têm que atravessar Torres, mas vocês não conhecem bem o caminho. Por isso, vou continuar a indicar-vos o caminho, atravessando Torres Vedras até à estrada que dá directamente para a Merceana.
E a voz da Sãozinha, minha mulher, no banco de trás, adiantou como se quisesse retribuir a amabilidade:
- Conhece o Sr. Dr. Francisco Carvalhosa? É médico. Vive na Merceana, na Quinta dos
Quinta dos Arneiros
Arneiros. Vimos do casamento do filho Francisco com a Filipa. O Dr. Francisco é nosso sobrinho. Olhe, se precisar de alguma coisa de médico vá ter com ele e conte-lhe o que o senhor nos fez. Vai tratá-lo bem. È muito bom médico e boa pessoa.
- Eu conheço-o - disse o senhor Afonso Henriques. - Então, vamos passar por Torres, por algumas rotundas, pelo lugar da Feira de S. Pedro. Sigam-me.
E de pronto, de novo com ele à frente, seguimo-lo até Torres Vedras onde, depois de tornearmos várias rotundas nos colocou na estrada onde o painel informativo tinha impresso em grandes letras: “MERCEANA”.
Nova paragem, e nova palestra dialogada:
- Oiçam, eu não devia ter feito isto, nem vocês. Hoje, isto não se pode fazer. Bom, agora é seguir esta estrada que passa pela Merceana.
Depois, trocámos uma curta conversação como se já nos conhecêssemos de longa data. Fizemos o convite de nos informar quando fosse a Aveiro, para lhe retribuirmos a gentileza, uma vez que se recusava a receber qualquer pagamento pelo serviço prestado.
E mais uma vez ele afirmou:
Todos por aí conhecem
o Afonso Henriques
- Quando voltarem a Torres perguntem pelo Afonso Henriques da Serra da Vila. Todos por aí conhecem o Afonso Henriques.
De súbito, um telefonema interrompeu-o, explicando ele, pelo telemóvel, à voz feminina que comunicava do outro lado, o que havido acontecido com o carro que havia parado junto do seu, na povoação de Arneiros. E dizendo que tudo estava bem, terminou desejando boa noite e o envio de um grande beijinho para a interlocutora.
E nós, já no caminho certo, ali o deixámos, com expressivo e vivido reconhecimento pela espontânea ajuda em nos indicar o caminho da pretendida Merceana.
Já no bom caminho divertimo-nos a relembrar o modo enfático como Afonso Henriques havia afirmado no primeiro contacto: “Estão perdidos e muito bem perdidos”.
Como não? Tínhamos deixado, já alta noite o local da boda, onde após o consumo de um majestoso leque de iguarias, tínhamos assistido às danças sevilhanas executadas com requintado salero e graciosa sedução, por um grupo de jovens em que de igual para igual, com inesperado garbo, surpreendentemente partilhava a Teresinha, irmã do noivo, que assim quis fazer aos noivos uma homenagem e surpresa de arte sevilhana, plena de lúdica sensualidade, como que a lembrar-lhes as novas obrigações que na manhã daquele dia haviam assumido na Igreja para a vida futura. Lembrávamos que os noivos estavam serenos e felicíssimos, muito gentis, com particular atenção a todos, com todos partilhando da sua felicidade. Por isso, nós havíamos partido felizes, do local da boda, com a promessa de lá voltarmos no dia seguinte, para continuar e completar o lauto banquete de serviço contínuo, que iria perdurar, pelo menos, nos primeiros dois dias de casamento.
Já passava das duas horas da manhã quando, entrámos nos domínios da Quinta de Arneiros, na Merceana. Fora da habitação esperavam-nos, com alguma preocupação, os nossos queridos sobrinhos a quem, para os tranquilizar, de modo sucinto, relatámos divertidamente o episódio vivido com a participação do nosso guia: Afonso Henriques.  

5 comentários:

  1. O amigo Afonso Henriques apareceu em Torres Vedras carregando com ele uma disponibilidade tão rara nos nossos dias. Realmente ele tinha razão: "não devia fazer isto". Mas fez e ainda bem porque realmente às vezes é preferível dar voz ao coração e calar a razão.
    Nem me atrevo a falar da forma, da mestria com que usa as palavras, do crescendo que nos vai prendendo à leitura e não nos deixa parar. Isso é para os peritos: eu só posso dizer que devorei linha a linha, numa pressa enorme de querer chegar ao fim. E, quando terminei, voltei ao princípio e saboreei então letra a letra, palavra a palavra uma lição de confiança já tão em desuso.
    Bem-haja pela sua participação!

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  2. Iniciei a leitura e julgava eu que iria encontrar espadas, mouros,alguma desordem com fobia de conquista, até mesmo algum filho a bater à mãe... Mas não. Li uma história verídica admiravelmente contada pelo autor.

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  3. Ainda bem que "a insípida voz metálica da menina do GPS" foi ignorada. Assim, a emoção da aventura vivida conduziu tranquilamente a narrativa que nos lembra que a confiança mútua ainda acontece.
    Precisamos de saborear finais felizes!

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  4. Esta narrativa tem tudo para nos prender e alterar o ritmo cardíaco: horas mortas, locais ermos, um desconhecido com um nome a sugerir loucura, falsidade... Um gesto amigo saído do improvável, uma boa história a exigir ser registada no papel, um autor com grande talento. Obrigada!

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  5. Ao ler esta que foi uma história verdadeira, veio-me à memória a confiança com que comunicávamos uns com os outros, num tempo já com alguma distância.
    Que pena que assim já não aconteça atualmente.
    Está de parabéns o autor do texto, que nos provou que ainda é possível a comunicação franca e o espirito de interajuda entre as pessoas.
    Obrigada pela satisfação que me fez sentir com a sua história.

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