Maria Jorge
Uma
senhora de 65 anos, vivendo sozinha e já reformada, sofrendo de hipertensão já
há alguns anos, toma habitualmente medicação adequada para o controlo da mesma.
O isolamento na falta de saúde |
Durante
alguns dias começou a sentir sintomas de que algo não estava bem. Resolvendo
medir a tensão pôde verificar que a mesma estava bastante alta. Como tinha
consulta de rotina marcada para o dia 27 de maio, deslocou-se ao Centro de
Saúde para pedir a antecipação da consulta, tendo sido informada que o sistema
informático estava avariado e que iria demorar uns dias a ser reparado.
Estando
a tomar dosagem de 5mgs de determinado medicamento, podia ir até 20mgs, mas só por
indicação médica. Por sua iniciativa dobrou a medicação. Substituiu a água por
chá natural próprio para a hipertensão, tomou comprimidos para dormir (a sua
hipertensão é de origem nervosa). Mas nada fazia efeito. A tensão continuava a
subir. Sábado à tarde, dia 25 de maio, uma vez mais, mediu a mesma: 189 – 101.
Entrou em pânico, porque já teve dois pequenos acidentes, felizmente sem
sequelas de maior, apenas algumas poucas células cerebrais mortas. Deslocou-se
ao hospital de Aveiro a fim de ser observada, por volta das 18:30h.
Fez
a sua inscrição, explicando os motivos que a levaram lá. Ficou deveras admirada
quando lhe pediram dezoito euros pelo valor da consulta. Quase não acreditando
no que estava a ouvir, pediu para lhe repetirem o valor, queria confirmar se
estaria a ouvir bem, porque saiu apressada de casa apenas com a preocupação de
ser vista por um médico e verificou que não tinha dinheiro, mas resolveu a
situação pagando através do Multibanco.
Dirigindo-se
para a sala de espera, ficou muito admirada por ver tão poucas pessoas e
pensou
que, rapidamente, iria ser atendida. Enquanto esperava foi observando o
ambiente. Enfermeiro para cá, enfermeiro para lá, maca para aqui, maca para
acolá, mas sempre muito pouco movimento, tudo muito à vontade, com exceção dos
doentes impacientemente à espera de serem chamados. Olhou para o relógio e para
as pessoas que já lá se encontravam aquando da sua chegada. Pensou que se em
mais de uma hora tinham sido chamados apenas três doentes, estaria ali a noite
toda para ser vista por um médico de serviço. Seria agora, numa urgência
hospitalar, que iria ter um verdadeiro AVC?
...tão poucas pessoas! |
Reparou
num enfermeiro que já tinha entrado e saído daquele serviço. Aproximando-se dele,
pediu-lhe que a informasse de quantos médicos estavam de serviço naquele bloco.
Foi esclarecida que, apesar de serem dois, naquele momento era apenas um,
porque o outro foi chamado para uma outra urgência. O diálogo teria ficado por
aqui se a senhora não estivesse enervada por ver o tom sarcástico do mesmo ao
ter-lhe dito que iria esperar muito mais do que já tinha esperado.
...uma pergunta não inocente |
E, palavra
após palavra, a senhora teve a infelicidade de dizer ao senhor enfermeiro que a
sala tinha “meia dúzia de gatos-pingados” o que o deixou muito ofendido, porque
ele também estava incluído nesse grupo. No meio da sala, em tom agressivo,
disse o que achou oportuno e conveniente nestas alturas, chamando-lhe,
repetidamente mal-educada. Mas… o que realmente a senhora pretendia, era saber
quantos médicos estavam naquele serviço de urgência do Hospital de Aveiro. É
evidente que a sua pergunta não tinha sido inocente.
De
novo sentada, um turbilhão de sentimentos invadiram o seu ser. Aquele
enfermeiro, muito jovem ainda, tinha idade para ser seu filho e estava a
tratá-la daquela maneira; recordou-se de ter ouvido um responsável de um
governo da altura dizer na TV que quem quisesse saúde tinha de a pagar; de
ouvir da boca dos nossos atuais governantes as maiores barbaridades que querem
fazer aos reformados e pensionistas deste país; durante uma vida inteira de
trabalho os reformados entregaram uma percentagem do seu vencimento para um dia
mais tarde terem direito a uma reforma de acordo com o que depositaram fielmente
na Segurança Social ou na sua congénere.
Hoje, o discurso é completamente
diferente, ou seja, os atuais trabalhadores estão a pagar as
suas reformas e do
capital investido pura e simplesmente não se fala, antes pelo contrário, está
tudo falido; o primeiro-ministro deste país à beira-mar plantado, assim como
quase todos os membros do atual governo, tal como este jovem enfermeiro e os
outros jovens da mesma geração foram educados nas melhores escolas fossem elas
públicas ou privadas; tiveram direito a uma semanada ou a uma mesada;
telemóveis da última geração; máquinas de calcular profissionais e mais tarde
computadores; foram para o estrangeiro nas suas férias de finalistas; fizeram
férias em praias paradisíacas; conheceram outras culturas; aos dezoito anos
tiveram dinheiro para a carta de condução; tiveram a sua primeira mota ou
carro; tiraram o seu curso superior, grande parte deles em universidades
privadas; tiveram dinheiro para a entrada da sua primeira casa; e mais, e mais
pensamentos povoavam o cérebro da senhora de 65 anos.
Solidariedade entre gerações |
O que fizeram de errado? |
Então
não tinha sido muito melhor que aquele enfermeiro acalmasse a senhora,
inclusivamente fosse medicada em S.O.S o que tradicionalmente se diz “o
comprimido debaixo da língua” para lhe baixar a tensão e depois esperar pela
sua vez?
Quantos
sacrifícios não fizeram os pais da sua geração para darem tudo ou quase tudo
aos filhos? Do que tiveram de abdicar para lhes dar um futuro melhor? Do que
têm de fazer ainda hoje em nome da crise? O que fizeram de errado?
Hoje,
com os cabelos já todos grisalhos, não seria tempo de viverem o resto das suas
vidas com respeito e dignidade?
E,
absorta nestes pensamentos e com uma grande revolta interior, mas não
conformada, a senhora de 65 anos levantou-se e foi-se embora do Hospital de
Aveiro cerca das 19:55h não querendo ficar à espera para ser atendida.
Pergunta-se:
E não teve medo dum AVC? Não, não teve, porque iria assumir toda a
responsabilidade e sofreria as consequências do seu ato.
Medicina feita de dedo silenciador em riste e de olhos no computador.
ResponderEliminarOnde está o doente? Já se foi. Tinha pressa e necessidade de atendimento humanizado.
Quem fomentou esta medicina desumanizada? Quem está a racionar medicamentos quando uma doença se torna mais dispendiosa? Quem está a fomentar a ideia de que para os jovens terem emprego os velhos não podem ter reformas? Quem está a põr-nos uns contra os outros?
ResponderEliminarGostava de viver numa sociedade solidária e não nesta em que os velhos parecem terem deixado de ter lugar...
Excelente, Maria! Adorei!
Esta é a (falta) saúde que temos... Esta é a democracia que não queríamos ter... Este é o SNS que dizem que temos...
ResponderEliminarEstão a roubar-nos o pouco que chegámos a ter. Estamos à beira de termos que querer mudar de vida...Querem que deixemos de conjugar o verbo ter... Resistamos com hipertensão ou sem ela a toda e qualquer afronta. Só nos basta atuar com a mesma coragem desta senhora de 65 anos!
Muito bem Maria. Aconteceu uma situação idêntica a um jovem de quarenta anos. Foi ao hospital, porque sentia uma dor no peito. Só isso era de passar à frente. Depois de estar três horas à espera, desesperado, foi embora e recorreu ao privado. É desesperante a maneira como são tratadas as pessoas.
ResponderEliminarE, assim, o hospital recebeu um "donativo" de 18 euros para ajudar a equilibrar o seu orçamento! Quanto à senhora de 65 anos, para a próxima, vai pensar duas vezes antes de recorrer ao hospital. Se o fizer, espero que, pelo menos, esteja de serviço um enfermeiro mais humano, o que não acontece por decreto.
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