Estamos a publicar textos subordinados à temática
AMIGOS e AMIZADE. Colabore e remeta-nos o seu texto ou poema inédito para
publicação. Ouse! A diversidade fortalece a amizade.
Conceição Cação
Corpo esguio, membros
delgados de veias azuladas a sobressair na pele macilenta, pescoço alto,
encimado por um rosto sempre em remodelação ─ eis a minha amiga Felisbela. Abençoada
com um rosto perfeito e um corpo elegante, rejeitou sempre as imperfeições com
que o tempo patenteia implacavelmente a sua passagem, mantendo, com ele, uma
luta encarniçada da qual teima em sair vencedora. Num esforço desmedido e cego
contra adversário tão poderoso, foi gastando recursos, esgotando energia,
sacrificando outros interesses, paulatinamente abandonados, adulterando a sua própria
identidade. Obcecada pela aparência, renunciou à boa comida, ao convívio, aos
amigos…
Obcecada pela aparência... |
Quando se aproxima,
esperando de mim, um elogio à sua elegância, emudeço, reprimo uma lágrima. Em
jeito de vingança, pelo meu silêncio, a Felisbela lança-me olhares e palavras
de desdém, visando as marcas com que o tempo me presenteou. Por trás do ar
altivo, percebe-se, cada vez mais, naquele rosto uma expressão, de
insatisfação, de melancolia…
Sinto uma profunda saudade
da minha amiga Felisbela, que distribuía alegria e sorrisos em todos os lugares.
Tomei uma decisão: vou
convidá-la para passar algum tempo comigo, neste verão. Tal como
acontecia
amiúde na nossa infância vamos passar uns tempos na casa de campo da minha
família. Aí, revivendo as doces recordações do passado, vamos assistir ao raiar
da aurora, em longos passeios pela floresta; observar as aves, espreitar os
ninhos; escutar a música das fontes; em hora de calmaria, estendidas na relva,
fresca, deixar-nos embalar pelo murmúrio das águas cristalinas do ribeiro…
Vamos também participar nas actividades da quinta: então, a minha amiga, sentindo
despertar o gosto pela proximidade dos animais, vai alimentar as aves, escovar os
cavalos, passar a mão pelo dorso macio das vacas, brincar com os cães… À
tardinha, vamos conversar com os amigos, no café da aldeia, sempre acolhedor, e
recebê-los em festas, simples, no amplo terraço soalheiro da nossa casa.
Nada de dietas... |
E nada de dietas insípidas e
doentias! Vou preparar-lhe o que combina com este ambiente rústico e
reconfortante: pratos tradicionais, trazidos até mim através das receitas da
minha avó e da minha mãe: não faltará o pão caseiro, cozido pela Armanda, a
antiga cozinheira, no forno de lenha, e as compotas ao pequeno-almoço; bolos e
pataniscas de bacalhau e enchidos à merenda…
À tardinha vamos conversar com os amigos |
Ao almoço e jantar, vamos
deliciar-nos com saborosos pratos de peixe, pescados no ribeiro; pratos da
saborosa carne dos animais, criados no monte; vegetais frescos e variados da
nossa horta… E para acrescentar doçura a este convívio, não vamos dispensar as
sobremesas: além da fruta, colhida das árvores, teremos arroz-doce, papos de
anjo, toucinho do céu e outras iguarias a que nem os santos resistiriam.
Vou, assim, pegar na mão da
Felisbela e ajudá-la a reencontrar-se e a reencontrar o seu percurso, perdido
algures, no labirinto da vida.
Dizer a um amigo umas boas verdades exige cuidado e sensatez - proporcionar-lhe momentos de reflexão e lucidez é o verdadeiro papel do amigo.
ResponderEliminarExcelente o crescendo do texto até um final senão insólito pelo menos inesperado: como pode uma pessoa que sempre se dedicou a cuidar da sua imagem aceitar tão facilmente uma reviravolta total da sua vida? Difícil, não é?
"Arroz-doce, papos de anjo, toucinho do céu e outras iguarias a que nem os santos resistiriam." Isto é que é ser amiga! Só eu não tenho amigos destes e até nem sou santo... E, quem sabe se não ficaria a escrever melhor?!
ResponderEliminarConvite irrecusável de filantrópica amizade mas que aguarda um grande trabalho de conversão ou talvez não...
ResponderEliminarAmigos, as nossas ações nem sempre geram as ações mais previsíveis. Por vezes, para conseguir a mudança, temos de arriscar atitudes mais ousadas, insólitas... Vá lá, concedam alguma tolerância ao meu lado lírico!
ResponderEliminarLina maneira de tentar dar a volta a essa amiga que se perdeu no tempo. Desejo ardentemente que consiga os seus objetivos, Conceição.
ResponderEliminarÚLTIMA HORA
ResponderEliminarUsando do seu direito de resposta, a Felisbela pede-me que divulgue o seguinte: "Amiga escrevente, para começar, quero agradecer-te por teres publicado um texto sobre mim nesse prestigiado blogue. Não é que eu pretenda protagonismo, mas fiquei emocionada. Até me brotou uma lagrimazita no canto do olho, que só não arruinou a minha maquilhagem porque só uso produtos de boas marcas. Quanto ao convite que pretendes fazer-me, devo informar-te que considero uma ideia absolutamente peregrina - 1º: não frequento esse tipo de ambientes sem interesse, sem classe... Só tu é que consegues ver poesia nesses barrancos com vaquinhas a pastar! (Nem quero pensar que alguma vez me identifiquei com esse teu lado rústico.)2º: Jamais aceitaria um programa que configura um verdadeiro atentado à minha elegância. Papos de Anjo, Toucinho do Céu?! (Olha, dá a minha parte ao Zé Luís.)Como pudeste pensar que eu ia aceitar? Julgava-te mais inteligente. Texto com reviravolta, final insólito, doses tóxicas de filantropia... Os teus amigos têm razão. Deixa-te disso, São"
Pois fique sabendo, São: a Felisbela pode não querer mudar de imagem e juntar-se ao "tipo de ambientes sem interesse" que tanto nos agradam e nos deliciam. Pode até não saber o que é memória e encantar-se com um bom papo de anjo; pode até achar que somos todas umas "foleironas" que só "gostamos de vaquinhas a pastar" (ela não o disse mas depreende-se); pode julgar-nos pouco "inteligentes"... Pode isso tudo e mais algumas coisas...(eu não lhe disse que certas verdades são duras de roer?) Agora uma coisa é certa - escreve bem e escreve como quem fala com a caneta afiada na ponta da lingua. E se ela se deixasse de ilusões e começasse a publicar, de facto, no Evoluir. Diga-lhe que já não vemos vacas há muito tempo(que pena - há tão pouquitas por cá).
ResponderEliminarDistrai-me um pouco e, quando presto atenção, aprecio uma desenvolta conversa com réplicas, apreciações e comentários... São, já não se trata de tolerância ao seu lado lírico, sempre tão tranquilizante, mas, sim, de um saber pôr-nos a dialogar para além do texto.
ResponderEliminarConfesse que foi uma saudável provocação. Por mim, está perdoada e fico à espera de mais.
Entrou-se no domínio dos conceitos do belo, da beleza, bucolismo, etc e instalou-se a discussão num reino em que não voto
ResponderEliminarInteressante este texto, pelo conteúdo e pela interação que provocou. É bom que seja assim, permite-nos trocar impressões sobre assuntos do dia a dia.
ResponderEliminarInfelizmente existem por aí muitas Felisbelas mas, há também muitas outras pessoas que são bem mais lucidas, o que nos permite acreditar ainda no bom senso e na amizade.
Obrigada São por mais este trabalho que partilhou connosco.
Afinal amizade também nos permite isto, não é assim? Gostei muito.
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