sábado, 8 de junho de 2013

Geração grisalha à rasca


Maria Jorge

Uma senhora de 65 anos, vivendo sozinha e já reformada, sofrendo de hipertensão já há alguns anos, toma habitualmente medicação adequada para o controlo da mesma.
O isolamento na falta de saúde
Durante alguns dias começou a sentir sintomas de que algo não estava bem. Resolvendo medir a tensão pôde verificar que a mesma estava bastante alta. Como tinha consulta de rotina marcada para o dia 27 de maio, deslocou-se ao Centro de Saúde para pedir a antecipação da consulta, tendo sido informada que o sistema informático estava avariado e que iria demorar uns dias a ser reparado.
Estando a tomar dosagem de 5mgs de determinado medicamento, podia ir até 20mgs, mas só por indicação médica. Por sua iniciativa dobrou a medicação. Substituiu a água por chá natural próprio para a hipertensão, tomou comprimidos para dormir (a sua hipertensão é de origem nervosa). Mas nada fazia efeito. A tensão continuava a subir. Sábado à tarde, dia 25 de maio, uma vez mais, mediu a mesma: 189 – 101. Entrou em pânico, porque já teve dois pequenos acidentes, felizmente sem sequelas de maior, apenas algumas poucas células cerebrais mortas. Deslocou-se ao hospital de Aveiro a fim de ser observada, por volta das 18:30h.
Fez a sua inscrição, explicando os motivos que a levaram lá. Ficou deveras admirada quando lhe pediram dezoito euros pelo valor da consulta. Quase não acreditando no que estava a ouvir, pediu para lhe repetirem o valor, queria confirmar se estaria a ouvir bem, porque saiu apressada de casa apenas com a preocupação de ser vista por um médico e verificou que não tinha dinheiro, mas resolveu a situação pagando através do Multibanco.
Dirigindo-se para a sala de espera, ficou muito admirada por ver tão poucas pessoas e
...tão poucas pessoas!
pensou que, rapidamente, iria ser atendida. Enquanto esperava foi observando o ambiente. Enfermeiro para cá, enfermeiro para lá, maca para aqui, maca para acolá, mas sempre muito pouco movimento, tudo muito à vontade, com exceção dos doentes impacientemente à espera de serem chamados. Olhou para o relógio e para as pessoas que já lá se encontravam aquando da sua chegada. Pensou que se em mais de uma hora tinham sido chamados apenas três doentes, estaria ali a noite toda para ser vista por um médico de serviço. Seria agora, numa urgência hospitalar, que iria ter um verdadeiro AVC?


Reparou num enfermeiro que já tinha entrado e saído daquele serviço. Aproximando-se dele, pediu-lhe que a informasse de quantos médicos estavam de serviço naquele bloco. Foi esclarecida que, apesar de serem dois, naquele momento era apenas um, porque o outro foi chamado para uma outra urgência. O diálogo teria ficado por aqui se a senhora não estivesse enervada por ver o tom sarcástico do mesmo ao ter-lhe dito que iria esperar muito mais do que já tinha esperado.
...uma pergunta não inocente
E, palavra após palavra, a senhora teve a infelicidade de dizer ao senhor enfermeiro que a sala tinha “meia dúzia de gatos-pingados” o que o deixou muito ofendido, porque ele também estava incluído nesse grupo. No meio da sala, em tom agressivo, disse o que achou oportuno e conveniente nestas alturas, chamando-lhe, repetidamente mal-educada. Mas… o que realmente a senhora pretendia, era saber quantos médicos estavam naquele serviço de urgência do Hospital de Aveiro. É evidente que a sua pergunta não tinha sido inocente.
De novo sentada, um turbilhão de sentimentos invadiram o seu ser. Aquele enfermeiro, muito jovem ainda, tinha idade para ser seu filho e estava a tratá-la daquela maneira; recordou-se de ter ouvido um responsável de um governo da altura dizer na TV que quem quisesse saúde tinha de a pagar; de ouvir da boca dos nossos atuais governantes as maiores barbaridades que querem fazer aos reformados e pensionistas deste país; durante uma vida inteira de trabalho os reformados entregaram uma percentagem do seu vencimento para um dia mais tarde terem direito a uma reforma de acordo com o que depositaram fielmente na Segurança Social ou na sua congénere. 
Hoje, o discurso é completamente diferente, ou seja, os atuais trabalhadores estão a pagar as
Solidariedade entre gerações
suas reformas e do capital investido pura e simplesmente não se fala, antes pelo contrário, está tudo falido; o primeiro-ministro deste país à beira-mar plantado, assim como quase todos os membros do atual governo, tal como este jovem enfermeiro e os outros jovens da mesma geração foram educados nas melhores escolas fossem elas públicas ou privadas; tiveram direito a uma semanada ou a uma mesada; telemóveis da última geração; máquinas de calcular profissionais e mais tarde computadores; foram para o estrangeiro nas suas férias de finalistas; fizeram férias em praias paradisíacas; conheceram outras culturas; aos dezoito anos tiveram dinheiro para a carta de condução; tiveram a sua primeira mota ou carro; tiraram o seu curso superior, grande parte deles em universidades privadas; tiveram dinheiro para a entrada da sua primeira casa; e mais, e mais pensamentos povoavam o cérebro da senhora de 65 anos.
O que fizeram de errado?
Então não tinha sido muito melhor que aquele enfermeiro acalmasse a senhora, inclusivamente fosse medicada em S.O.S o que tradicionalmente se diz “o comprimido debaixo da língua” para lhe baixar a tensão e depois esperar pela sua vez?
Quantos sacrifícios não fizeram os pais da sua geração para darem tudo ou quase tudo aos filhos? Do que tiveram de abdicar para lhes dar um futuro melhor? Do que têm de fazer ainda hoje em nome da crise? O que fizeram de errado?
Hoje, com os cabelos já todos grisalhos, não seria tempo de viverem o resto das suas vidas com respeito e dignidade?
E, absorta nestes pensamentos e com uma grande revolta interior, mas não conformada, a senhora de 65 anos levantou-se e foi-se embora do Hospital de Aveiro cerca das 19:55h não querendo ficar à espera para ser atendida.

Pergunta-se: E não teve medo dum AVC? Não, não teve, porque iria assumir toda a responsabilidade e sofreria as consequências do seu ato.  

5 comentários:

  1. Medicina feita de dedo silenciador em riste e de olhos no computador.
    Onde está o doente? Já se foi. Tinha pressa e necessidade de atendimento humanizado.

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  2. Quem fomentou esta medicina desumanizada? Quem está a racionar medicamentos quando uma doença se torna mais dispendiosa? Quem está a fomentar a ideia de que para os jovens terem emprego os velhos não podem ter reformas? Quem está a põr-nos uns contra os outros?
    Gostava de viver numa sociedade solidária e não nesta em que os velhos parecem terem deixado de ter lugar...
    Excelente, Maria! Adorei!

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  3. Esta é a (falta) saúde que temos... Esta é a democracia que não queríamos ter... Este é o SNS que dizem que temos...
    Estão a roubar-nos o pouco que chegámos a ter. Estamos à beira de termos que querer mudar de vida...Querem que deixemos de conjugar o verbo ter... Resistamos com hipertensão ou sem ela a toda e qualquer afronta. Só nos basta atuar com a mesma coragem desta senhora de 65 anos!

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  4. Muito bem Maria. Aconteceu uma situação idêntica a um jovem de quarenta anos. Foi ao hospital, porque sentia uma dor no peito. Só isso era de passar à frente. Depois de estar três horas à espera, desesperado, foi embora e recorreu ao privado. É desesperante a maneira como são tratadas as pessoas.

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  5. E, assim, o hospital recebeu um "donativo" de 18 euros para ajudar a equilibrar o seu orçamento! Quanto à senhora de 65 anos, para a próxima, vai pensar duas vezes antes de recorrer ao hospital. Se o fizer, espero que, pelo menos, esteja de serviço um enfermeiro mais humano, o que não acontece por decreto.

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