quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Salvei os Clássicos!

Conceição Cação

Uma onda de calor invade-me o rosto, o coração bate aceleradamente… Sem ressentimento pela minha longa ausência, o Bairro Norton de Matos (o meu Bairro
Bairro Norton de Matos
Marechal Carmona) abre-se-me como um livro de história, de estórias. A dominar a colina, acolhe-nos, prazenteira, a rua de Angola. A emoção em crescendo, caminho ao longo do passeio empedrado. Como num espelho, os raios de sol miram-se na calçada polida; mais além, pedras soltas clamam pela mão que as enquadre no puzzle e faça renascer a estrela que deixaram apagar. Como num índice, vão-se apresentando as ruas principais que, bem alinhadas, terão o seu epílogo na rua de Moçambique, contracapa deste livro de páginas de betão. Entro na rua Vasco da Gama. As mesmas vivendas de outros tempos, bem conservadas, quase todas mantêm a traça inicial. Agrada-me ver que este bairro, resistindo à febre imobiliária, soube preservar o seu património e a qualidade de vida dos seus moradores. Lá está a casa da Maria João, mais além a da Arlete… Onde estarão as minhas colegas do liceu? Os jardins, bem cuidados, lembram-me que ali a vida continua a fluir, aquelas paredes vão acumulando décadas de memórias, enquanto acolhem no seu seio geração após geração. Viro à direita para a rua Bartolomeu Dias… Sim, toda a toponímia evoca os tempos áureos dos descobrimentos, do império, bem ao gosto do Estado Novo.
Chegámos agora a um pequeno jardim – vários bancos de pedra, um retângulo de relva ao centro bordejado de petúnias multicores; dois renques de árvores frondosas
...um pequeno jardim
prontas a oferecer sombra a alguém que, passando, ali queira aliviar o cansaço ou simplesmente deleitar-se com aquele pedacinho de paraíso. Num painel de azulejo, pode ler-se Praça da Índia Portuguesa. Anacronismo e quietude a transportarem-nos para outras eras.
De súbito, duma moradia em obras, dá-se início a um martelar incessante. É melhor afastarmo-nos. Mas inesperadamente algo nos detém – junto dum contentor verde, em cima dum pequeno muro, vários livros, alguns deles dentro dum saco de supermercado. Livros de capa rígida… Vejamos: Contos da Cantuária – sim, o conto do Moleiro, da Freira… Parece-me um sonho! Quantas recordações me despertam! E que mais? Ah! Balzac, Fielding, Galland, Dostoievski, Tolstoi. Olha, estão novos, até parece que nunca foram folheados! Porque terão ido parar ali? 
Trinta centímetros de literatura
Trinta centímetros de literatura certamente adquirida para completar a decoração duma sala. Será que a simplicidade da lombada já não satisfaz os gostos dos novos locatários? Muito novo-riquismo e pouco amor à arte? Nunca o saberemos. Como filhos indesejados, foram ali abandonados para que a sensibilidade dos transeuntes decidisse o seu destino. Não, o lixo não! Penso nas minhas estantes, os livros já arrumados em segunda fila… Não importa, não tenho nenhum destes, já os li há muito, hei de voltar a lê-los um dia. Depois, bem, depois posso guardá-los (mais umas boas horas de leitura como herança para os filhos e netos), doá-los a uma biblioteca ou, quem sabe, poderão até seguir para a banca da Paula, que certamente apreciará o aumento do seu stock de livros usados. Assim, tomada a decisão, como a fragilidade do saco ameaçava soçobrar ao peso daqueles tesouros, transportei-os ao colo, bem juntinho ao coração.
Revejo-os a todos...
E cá está a rua da Guiné, a minha rua. Aquela era a casa onde vivi parte da adolescência. Também ela mantém ainda a antiga fachada. Só a cor mudou: as paredes amareladas a contrastar com o verde das portas e janelas dá-lhe um ar digno de quem soube acompanhar sucessivas gerações, adaptar-se continuamente e resistir corajosamente aos efeitos devastadores do tempo. O que haverá por detrás daquelas cortinas de renda? A entrada, estreita, deixa entrever parte do pátio. Era ali que nos reuníamos para conversar depois de terminar as tarefas escolares. Revejo-os a todos: a Lídia, o Afonso, a Lurdes, a Luísa e também  o Zé e a Clara, os universitários que nos olhavam com um sorriso condescendente do alto da sua erudição de capa e batina. Vasos de begónias
Salvei os Clássicos!
garridas ladeiam o cinzento tristonho da passagem. Indiferente à minha presença, um gato de pelo preto luzidio transpõe dum salto o pequeno portão de madeira e, após um breve avanço decidido, para e fixa o olhar na árvore do quintal contíguo, onde dois pássaros chilreantes esvoaçam de ramo em ramo.

Um pouco contrariada, afasto-me deste cenário nostálgico. Levanto os olhos para o céu. As nuvens, ainda há pouco graciosos castelos de algodão a coroar o azul celeste, já se carregaram dum cinzento ameaçador. Os raios de sol são agora mais pálidos. O outono a impor-se a um verão desejoso de continuar. É preciso iniciar a viagem de regresso.
Em silêncio pela nacional, satisfeita, vou revendo os títulos resgatados. Vou relê-los sim, todos! Sob um céu de chumbo, rompem-se as nuvens, precipita-se sobre a estrada uma chuva diluviana. Bem aconchegados no banco de trás, o príncipe Michkin, Ana Karenine, Tom Jones, Lucien Chardon, Xerazade, o Moleiro… salvos das águas. Na praça deserta, o velho dicionário e a gramática de francês de folhas amarelecidas estarão a ser transformados pela chuva impiedosa numa amálgama ininteligível e inútil.

 Sinto-me orgulhosa – revisitei o passado e  salvei os clássicos!



Conceição Cação ©2014,Aveiro,Portugal

1 comentário:

  1. Orgulhosa e com motivo grande. A vivência da personagem traduz um dilema muito intenso que a sociedade nos vai colocar, cada vez com maior frequência. O texto digital tenderá a impor-se e banir o texto impresso?

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