terça-feira, 5 de novembro de 2013

Uma história de formigas que continuaram formigas

Albertina Vaz

Estava um dia de calor infernal, daqueles que já ninguém conhecia há muitas, muitas décadas. Nem apetecia dar um passo, mexer uma mão, sair de casa – até simplesmente movimentar um dedo parecia uma tarefa insustentável.
Nem um ruido, nem o canto dum pássaro, nem o soluçar de uma fonte – nada nem ninguém queria mover-se porque o simples agitar de uma folha se assemelhava a um esforço sem medida que tudo alterava e tudo dimensionava num tamanho insustentável.
Nos campos, outrora verdejantes, até as correntes de água tinham parado na sua corrida permanente em busca do mar, ou de rio que circulasse mais abaixo, ou de um lago que se espraiasse numa sinfonia de verde e azul, em mil tons duma paleta inspiradora impossível de decalcar.
Como vou sair-me desta?
Na sua toca a formiguinha colocava a mão na cabeça, limpava o suor que lhe caía em grossas bátegas e declarava: - Não consigo voltar lá a cima, já nem consigo dar mais um passo, já não há água por aqui… Como vou sair-me desta.
- Porque não cantas como eu? Não vês que não estou cansada? Eu só me canso de dançar, de pular, de tocar o meu violino e de lançar para o ar os sons vibrantes da minha música. Em dias destes farto-me de pensar em ti: eu vou ao mar, eu vou aos montes, eu vou onde quero, eu amo a liberdade e canto hinos de música refrescante que alegram quem comigo se cruza.
- Pois, pois, canta, canta que um dia hei de ver-te chorar.
E lá continuaram as duas - uma trabalhando para abarrotar o seu celeiro e a outra espalhando música e cor nos campos dum mundo pequenino feito de invejas, cobiças, ciúmes e maledicências. Até que o calor se foi e a noite veio estender-se e cobrir dum negro aluarado em que a luz da lua enchia as vozes e aclarava os sons.
... os trinados do seu violino...
Os sopros dos clarins da cigarra inundavam a noite e sabiam a mel coado e a flor de jasmim, os trinados do seu violino estendiam-se pela planície e espalhavam o encanto e a beleza duma ópera inacabada ou duma sinfonia de guitarras soluçando como gorjeios de mil vozes de pássaros ondulantes num voo desgarrado e solto a caminho da terra do prazer. Nada nem ninguém poderia ficar indiferente!
A formiga, a caminho da toca, ia pensando que tinha uma vida muito triste - sempre, sempre a correr de um lado para o outro, acartando para o seu celeiro tudo o que podia apanhar e até o que podia tirar aos outros - os tempos haviam mudado: dantes o celeiro era de todos, agora o celeiro é apenas dela e há-de enchê-lo até não poder mais. Não fosse o canto da cigarra e tudo seria mais difícil ainda, mas tinha de continuar. As suas tarefas eram inadiáveis, o seu trabalho não podia ter descanso.

Às vezes enganava-se - pensava que ia arrecadar mais mantimentos, até obrigava as outras a contribuir cada vez com mais e mais provisões, mas nem sempre as coisas corriam como ela planeara. Depois levantava a cabeça, seguia em frente e declarava: Vamos a trabalhar mais e mais e mais… Sois um povo muito bom, mas o que fazem é pouco, é muito pouco! Estais pouco habituados a trabalhar: a partir de amanhã vamos começar mais cedo e acabar mais tarde.
Vamos começar, perguntavam as outras? - nós é que começamos!
Para alguma coisa eu sou a rainha
das formigas...
- Para alguma coisa eu sou a rainha das formigas: posso planear, orientar, determinar, restringir, direccionar, encaminhar, conduzir, guiar, delimitar e até… enganar-me nos cálculos! Vocês são um bom povo, como o bom povo português! Só têm de continuar a fazer o que vos exijo… Vamos lá ver, essas formigas velhas que já não podem trabalhar toca a sair do formigueiro: vão para a floresta e fiquem por lá - deixem de ser um encargo para todos nós! E essas, que não sabem ainda fazer nada, o melhor é serem criativas e porem-se a andar: de barco, de avião ou a pé – mas, por favor, desamparem-me o formigueiro. Só cá quero as que já estão habituadas a trabalhar e a comer pouco. O que produzimos não dá para todos: vamos lá, vamos lá – toca a cirandar!
E logo o silêncio se instalava: cabisbaixas, obedientes lá iam as formigas de casa para o trabalho e do trabalho para casa - tristes, descontentes, penalizadas, aborrecidas, mudas e caladitas como se a voz se lhes tivesse fugido com o calor desmedido ou a chuva que se avizinhava.
... as mais novas começavam a partir
A miúdo, iam definhando, adoecendo, caindo pelas ribanceiras abaixo: as mais novas começaram a partir, a procurar novas paragens, outros mundos, convencidas de que a sua rainha era tão inteligente que não podiam competir com ela. Nem competir nem trabalhar ao lado dela.
Só a cigarra continuava a cantar saltitando de flor em flor com o seu violino sonoro que alegrava flores e acalentava sabores de pólenes transacionados pelos insetos portadores de boas notícias e de novas diferentes.
Vergadas sobre si mesmas, as formiguinhas lá continuavam sem conseguirem levantar a cabeça, começando a arrastar-se pelo chão, a deslizarem para junto de um grão de trigo, ou uma gota de água. Já quase nem sequer água havia!
Até que um dia veio a rainha e disse:
- Minhas amigas, vou-me embora! Afinal eu estava enganada: vocês já nem conseguem trabalhar quanto mais dar-me do vosso sustento. Vou para outras paragens - aqui, isto não me serve! Quem sabe, a minha prima, lá do norte da Europa, me não arranja um resort – cinco estrelas – para eu descansar este meu cérebro que tanto lutou por vocês. O que eu gostava mesmo era de um lugarzinho em Bruxelas, com ar condicionado, a fazer folhas de excel e a enganar-me! O que eu gosto de me enganar!!!
A cigarra, essa, sabe que todos
os seres do mundo, um dia,
serão iguais
Eu realmente estava enganada mas sabem, até foi divertido ouvir-vos gritar sem voz, ou cantar sem som. Julgavam que eu tinha medo? Nunca me assustaram, nem mesmo quando gritaram à minha passagem ou cantavam para me não deixarem falar ou riam para me calarem. Vocês riam para não chorarem e eu continuava a fazer o que bem entendia. No dia seguinte lá estavam, de cabeça baixa, a trabalhar, da floresta para o formigueiro e do formigueiro para a floresta.
Infelizmente a formiga rainha deixou por cá muitos seguidores e, então, a cigarra nunca conseguiu mais do que alegrar o dia-a-dia daquelas pobres formiguinhas porque no fundo, no fundo ela sabia que o trabalho é bom quando o seu fruto chega a todos e não se amontoa só num celeiro. Ainda por cima, um celeiro duma rainha que continua a dar ordens mesmo de longe, mesmo de outras bandas, mesmo de remotas paragens.
A cigarra, essa, sabe que, um dia, a formiga rainha vai perder os seus súbditos e todos os seres do mundo hão-de voltar a ser iguais, cada um cultivando a natureza na medida das suas necessidades ou ajudando os que já o não possam fazer para si.

7 comentários:

  1. "Eu realmente estava enganada mas sabem, até foi divertido ouvir-vos gritar sem voz, ou cantar sem som. Julgavam que eu tinha medo?"
    Uma história repleta de encanto... não fosse a ironia, mais uma vez, a sublinhar o desencanto! Até quando tanto "encanto"?

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  2. Neste beco sem saída anunciada, vamos todos fazer de cigarras e gritar, até que a voz nos doa, o tudo/pouco que também sabemos sobre os reis do poder e as rainhas da ganância que nos andam a tramar?

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  3. Todos nós estamos cansados de ouvir ditar leis sobre leis, sem que disso tiremos algum proveito. Estamos cada vez mais parecidos com as formigas deste conto.
    Este reino de engano e falsas promessas, necessita com urgência de cavaleiros/as com voz sonante, bom senso e elevados conhecimentos de gestão.
    Assim, as formigas vão sentir-se muito mais confiantes e motivadas.

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  4. Também eu sou parte integrante das formiguinhas velhas e cansadas que durante toda uma vida trabalhou para encher o celeiro da comunidade e um dia, quando necessitasse, iria buscar a minha quota parte desse mesmo celeiro que seria mais que merecido. Também eu, tal qual estas mesmas formiguinhas sou mandada para a floresta e que apodreça por lá... Não preciso que me digam ao ouvido: "Estás velha, já não me serves para nada". Sinto-o a cada virar da esquina que é o mesmo que dizer a cada lei que é ditada. Até quando?
    Gostei Albertina, gostei muito.

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    1. Quem diria que uma velha, tão velha, tão velha ... é capaz de ideias brilhantes como tu tens! Eles bem tentam encurralar-nos na floresta mas havemos de saber subir a uma árvore e encontrar a nossa amiga cigarra.

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  5. Bonito texto Albertina. Oxalá essa rainha tão má se afaste ràpidamente e que todos saibamos dar a volta a esta penúria.

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  6. Um talentoso reconto da velha fábula. Parabéns, Albertina.
    Espero que as formigas rainhas, que não sabem cantar nem apreciam o canto, um dia, "morram de fartura".

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