terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O PODER NÃO TEM ASAS

Albertina Vaz 


Vagueava pelas ruas da cidade admirando-se por não se cruzar com ninguém. Está cada vez mais só e mais cinzenta a cidade dos homens. Dos homens? Ou dos animais feitos homens? Ou dos homens que parecem animais?
Gostava de admirar uma narceja
Lá estava ele – sempre filosofando como se as narcejas não estivessem ali. E estavam, bem visíveis e bem altivas. Gostava de admirar uma narceja, no seu esplendor recatado, de quem sabe que o é e não aceita que lho digam. Era assim que avistava aquela ave, quando, de manhã, abria a janela do quarto e abraçava mais um dia.
Travava os olhos devagarinho e, pelas frinchas semicerradas, perscrutava o horizonte e descia do longe até junto de si – era aí que encontrava sempre a narceja residente que, queiramos ou não, teimava em não sair dali.
Conjeturara muitas vezes porque é que aquela ave permanecia ali. Às vezes pensava que era o mar que a prendia, outras, imaginava algum macho furtivo que viria de noite, quando todos dormiam, fazer-lhe a corte e desafia-la para voos de terras distantes e mares de paragens longínquas. Mas não – ela ali ficava envelhecendo como tudo à sua volta.
Nem sei mesmo se se dava conta de que o tempo ia passando porque se mantinha,
Valia a pena continuar a esperar?
estática e serena, de olhar parado e ouvido à escuta de alguma coisa ou de alguém que havia de já ter chegado. Mas ainda cá não está. Será que virá algum dia?
Ali à volta tudo parara no tempo e mesmo que alguém resolvesse chorar, doendo de tanto sofrer, ninguém daria conta nem ninguém correria a saber de que se tratava – era como naquelas cidades grandes, onde o barulho camuflava os sentimentos e os pássaros emigravam para longe.
Valeria a pena continuar a esperar? A narceja esperava calmamente cada dia que voltava sempre mesmo depois de uma longa noite, quando a lua se não via e no céu as estrelas deixavam de tremelicar. A narceja estava ali como dantes, quando as ruas tinham cravos e as portadas das janelas se iluminavam cada dia com um tumulto de corridas de roda e risos de crianças, que iam e vinham, apertando num abraço a cidade, num laço que se prende e que não se solta sem dor.
Tempos houve em que os homens daquela terra se reuniam à noitinha, quando os pássaros chegavam em bandos à procura daquela árvore que os acolhia nos seus braços que se alongavam mar adentro, num chamamento com sabor a sal. Uma canção dolente embalava as crianças e adoçava a voz dos velhos prevendo maus tempos para o futuro.
Tinham razão os velhos
Tinham razão os velhos. Eles sabiam que a verdade era um valor que devia ser preservado e que ser livre não era apenas deixar as palavras fluírem e as ideias esvoaçar. Eles sabiam que ser livre é poder escolher, é ser justo e poder agir, é virar as costas aos dias e fazer das horas o minuto em que tudo se constrói e em que a semente que se lançou à terra há de nascer um dia e crescerá e dela brotará uma flor – bela como tudo o que floresce.
Durante muito tempo, procurámos a liberdade e um dia – o dia dos sonhos – acordámos com a certeza que éramos livres. Como a narceja que voava em círculos meio loucos de ave liberta em dia de festa. Até que bateu com a cabeça na árvore do lado e feriu a asa. Levantou-se com o sorriso cúmplice daquelas coisas que também acontecem.
Alguns dias depois, vieram bandos de pássaros e invadiram-lhe a casa – aquela era a casa onde crescera, criara os filhos e se tornara livre. No dia em que a liberdade foi um dom, uma dádiva, uma iguaria servida à luz das estrelas.
Não eram muitos os pássaros mas tinham no olhar a força do poder. E o poder derramava-
E o medo acomodou-as.
se por entre eles. As suas asas enormes, abertas, medonhamente batiam, batiam até que à sua volta tudo se estilhaçasse. Voavam por cima das narcejas que eram muitas, muitas mais mas que foram perdendo, pouco a pouco, o brilho dos olhos, a graciosidade do andar e a alegria de viver.
E o medo acomodou-as. Tinham medo de voar, tinham medo de cantar, tinham medo de sorrir e até tinham medo de amar ou viver. Estranho dia aquele em que o sol – por muito quente que estivesse – só lembrava os dias chuvosos e agrestes dum inverno que se não quer.
Já não havia comer por ali, já não havia sol e até a lua parecia ter-se escondido nas noites em que o luar construía estradas de paredes brancas e vozes sem som. As narcejas não queriam lutar – eram livres e bastava-lhes gritarem-no ao vento que se avizinhava lá para as bandas do norte. Eram livres e já não queriam sonhar mais. Eram livres – eram livres!
E foram emudecendo, calando os gritos dentro de si, soluçando os soluços que já não saiam, agarrando as lágrimas que rugiam mais fortes, instalando a inércia, a rotina, o cansaço – instalando-se.
Partir seria a solução?
Um dia, uma acordou com uma ideia que não queria e lá foi falando de partir à procura de uma terra em que o poder não fosse só de alguns e onde todos partilhassem a alegria da vida e o dom de viver. E lá foram – uma a uma – com o peito estilhaçado e a saudade no olhar.
Partir seria a solução? – inquiriu a narceja de penas coloridas e asas peregrinas. Andavam para ali a apagar chamas, a fugir do poder, a correr à frente de aves gigantes, a fugir, a fugir… A fugir de quê? E de quem?
E lá estava ele a contar a história das narcejas, sem que ninguém ouvisse – estava só, na cidade deserta e cinzenta, não tinha ninguém que o ajudasse a pegar fogo àquela terra sem nome, onde a vida estava a terminar.
Olhou a narceja e viu-a prostrada, tentando esconder a cabecita sob a asa aberta e cheia de tantas cores e foi assim que entendeu que só quando perdemos o brilho dos olhos é que começamos a morrer.

Albertina Vaz ©2016,Aveiro,Portugal

8 comentários:

  1. As tuas narcejas lembram-me as gaivotas de Abril e o brilho dos olhos dum povo que ousou festejar a Liberdade e ter esperança em dias melhores. Os teus "pássaros que tinham no olhar a força do poder" serão os Vampiros do nosso Zeca, que têm devorado liberdades e saqueado o pão de muitas mesas.
    Um texto doce portador de uma mensagem muito forte que, eventualmente, poderia ser: BASTA, BASTA!

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  2. Uma metáfora carregada de sentido, um belo texto.

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  3. De Elisabeth Seixo recebemos o seguinte comentário:
    Um texto reflexivo sobre o "poder" - sobre quando, mal usado (e tende a sê-lo em quase todas as situações) -, afecta a vida de tanta gente - e como é difícil combatê-lo - quando as forças nos abandonam! Parabéns, Albertina!

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  4. De Jorge Neves recebemos o seguinte comentário:
    Belíssimo texto e mensagem! Parabéns!
    Palavra escrita
    Palavra dita
    E uma amizade bonita!
    Dia feliz e inspirado, amiga das palavras!
    Abraço

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  5. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Um texto de grande mestria que nos suscita vários sentimentos como a solidão, o amor e a esperança de uma liberdade que tarda em chegar. Gosto muito do que escreves. Parabéns."

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  6. De Aldina Duarte recebemos o seguinte comentário:
    " Que deslumbramento!...que maravilha!...que texto!..Obrigado Albertina por me proporcionares este prazer!..."

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  7. De Teresa Cardoso recebemos o seguinte comentário:
    "Parabéns, Albertina por este bonito texto!"

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