sábado, 30 de janeiro de 2016

O Boby

José Luís Vaz 


Havia um caçador que, durante a sua vida, teve vários cães. Um, o Boby, era muito especial para o dono, nem tanto para as outras pessoas. Era astuto, ladino e muito leal, só com o dono e traiçoeiro e manhoso com qualquer outra pessoa. Aquele homem tinha um orgulho enorme naquele animal, que descrevia como um verdadeiro cão de caça, tal a sua eficiência e astúcia em pleno mato. Ele corria, farejava tudo, entregava, com raro despacho, coelho ou perdiz ao caçador que o mimava com festas no focinho. Boby respondia com exuberante ladrar e saltos de satisfação.
 
Normalmente, pregava-a pela calada
        No dia a dia, passava o tempo junto à habitação do dono, num pequeno quintal que não lhe chegava, transpondo muros ou portões para policiar a rua. Aqui, o caso tornava-se muito sério, quando, por ventura, não lhe agradasse quem fosse a passar. Pessoas mal vestidas ou fardadas corriam sério risco ao tentarem passar e, muitas vezes, perante o ladrar típico de pretensa agressão, dono ou algum familiar vinham à porta para o chamar e ralhar com ele.
      Se bem que era perigoso para qualquer pessoa da casa aproximar-se da mesma durante a noite, porque ele só era leal ao dono, apesar de tudo, com uns raspanços, lá continuava, contra a vontade da esposa do caçador, que temia por algo de grave que pudesse acontecer.
        Normalmente, pregava-a pela calada, e desde ter rasgado as calças a um polícia, a batina a um padre, ter urinado nas pernas de uma senhora que, calmamente, conversava com a dona, a ter, repetidamente, feito correr um mendigo a sete pés, ele fez de tudo um pouco. O pouco tornou-se muito no dia em que rasgou a saíta de uma netinha da casa com apenas quatro anitos.

       “Tens que dar o cão a alguém, era o que faltava, mantermos aqui um animal que a todo o momento pode ser perigoso, ao ponto de se atirar a uma criança…” dizia para o marido a avó indignada.
        O dono, depois de muito matutar, encontrou uma solução que, embora dolorosa para ele, se impunha, pois o safado do cão tinha ultrapassado os limites ao atacar a netinha. Deu o animal a um outro companheiro de caça, que bem conhecia o seu desempenho em pleno monte, que vivia numa quinta a cerca de setenta quilómetros.
        Um dia, num calmo final de tarde, as sirenes dos bombeiros não paravam de tocar. O caçador estava num café a tomar uma “bica” e dica daqui, dica dali, ficou a saber que, nos arredores daquela localidade, segundo diziam, a cerca de três quilómetros da vila, teria havido um acidente de automóvel. Nas conversas de circunstância, muitos ditos e opiniões, mas, como se costuma dizer, cada opinião, sua sentença.
        A luz pública já estava acesa e a hora de jantar ia chegando, pelo que o caçador se retirou rumo à sua casa. Estava já, a meia dúzia de metros, quando, surpreendentemente, se apercebe que um cão, ainda distante, corria a grande velocidade na sua direção. Parou a observar a corrida desenfreada do animal, e de repente exclama: “É o Boby, é o meu Boby”.
       Quem presenciou o momento, descrevia o encontro, como se de duas pessoas se tratasse, tal o afeto que ambos, reciprocamente, manifestavam. Olhos de um e outro, banhados de felicidade, verdadeiros abraços entre homem e animal, festas e carinhos trocados por igual, transformaram aqueles instantes num momento, impressionantemente, surrealista.
        Esta história verídica, tantas vezes contada, tornou-se num conto exemplar, que acima de tudo, reflete a força da amizade entre dois seres. É de realçar o facto objetivo de o animal ter sido deslocado daquele local setenta quilómetros, havia cerca de dois anos e meio, ter deixado de ver aquele dono, e depois de um acidente ocorrido a cerca três quilómetros da casa do antigo dono, tenha conseguido fugir naquele sentido, com aquela direção, àquela velocidade, repleto de tanta emoção.

       Claro que não pode ser por mero instinto, que um cão, um simples grande cão, nos dê tamanho exemplo de orientação, lealdade, dedicação e amizade. Um animal, como qualquer humano, tem qualidades e defeitos, obrigando-nos a atuar em conformidade. 

 José Luís Vaz ©2016,Aveiro,Portugal    

4 comentários:

  1. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Os afetos não são exclusividade do ser humano. Parabéns Zé Luís Por este texto. Gostei."

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  2. De Mamia Labrincha recebemos o seguinte comentário:
    " Parabéns ao autor do texto."

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  3. Quem não terá nas suas memórias, antigas ou recentes, demonstrações de profundo afeto da parte destes animais? É por isso que sentimos tanta tristeza quando os perdemos e os recordamos com saudade. Um texto que poderá ser uma homenagem ao Boby e a outros Bobys que adoçaram a nossa vida.

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  4. Às vezes torna-se mais fácil entendermos um animal do que uma pessoa. O Boby era um cão dificil que só conhecia o dono. A relação entre ambos está retratada com muita acuidade e uma realeza que nos leva a a visualizar cada dia. Um texto escrito com muita clareza e repleto de um simbolismo que se percute nos meandros de cada linha.

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