terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Reencontro com a Esperança

Teresa Morais e Albertina Vaz ©2015,Portugal


Os olhos fitavam os olhos, sem reação. Gostava de ter o poder de ver através deles. Em que estaria a pensar? Oxalá o verbalizasse, que raio. Alegre por o rever? A odiá-lo? A porta continuava entreaberta, mas o braço em riste impedia a passagem.
O frio doía nos ossos. A noite acabara de se instalar. Era véspera de Natal. Um Natal que ansiava celebrar em paz, sem um permanente estado de alerta, sem o medo a roer-lhe as entranhas, sem ouvir tiros e detonações constantes, sem se defrontar, constantemente, com torturas, mortes e destruição, e a poder assumir, abertamente, a sua fé cristã sem receio de represálias.
O braço em riste continuava a barrar-lhe a passagem. Amal sorriu, tristemente. Tornara-se um estranho para o seu amigo Samir, porventura um intruso ou um ladrão, a seus olhos. E não teriam sido os meses, longos como o arrastar daquela absurda guerra, sem notícias um do outro e vividos em dois países diferentes e distantes, que seguravam o braço de Samir – Amal percebeu que estava irreconhecível: a extrema magreza, a longa barba a cobrir-lhe o rosto emaciado, os olhos cansados e tristes, os ombros descaídos, vergados ao peso da sua história recente e dolorosa, na sua amada e distante Síria. O frio doía-lhe nos ossos, a frieza do olhar de Samir doía-lhe no coração.
Correram-lhe lágrimas pelo rosto – a dor do reencontro, que sonhara diferente, misturava-se com a exaustão que atingira pela longa e penosa viagem até àquele país de uma Europa quase insuspeitada, o seu destino de recomeço, de esperança, de fraternidade, de paz.
Pela mente, passavam-lhe, numa sucessão vertiginosa de imagens, as distâncias que percorrera até os pés lhe sangrarem, a fome e o cansaço que sentira, a desconfiança, e até ódio, que lera em muitos olhares, finalmente a ajuda humanitária a assegurar-lhe o essencial.
Saíra da sua outrora bela, mas agora destruída cidade natal de Alepo, em Agosto, pela calada da noite, com o temor por bagagem, e transpusera as montanhas até à Turquia. Atravessara o Egeu, sem lhe ver o azul das águas, num frágil bote, apinhado de vontades e de esperança, e chegara à Grécia. De comboio, autocarro e a pé passara por países com nomes estranhos e impronunciáveis – Macedónia, Sérvia, Croácia, Hungria, Áustria, e em Paris se cruzara, por mero acaso, com um conterrâneo que lhe dera a morada de Samir.

O braço em riste afrouxou um pouco e Amal viu os olhos que o fitavam encherem-se, também, de lágrimas. Lágrimas muçulmanas, mas límpidas e sinceras como as suas lágrimas cristãs.
- És mesmo tu, Amal? Pensei que tinhas morrido… Tanto tempo a aguardar notícias tuas…
Um abraço forte a selar o reencontro. Samir franqueou-lhe, finalmente, a entrada e Amal deixou-se embalar pelo calor e o doce odor que se faziam sentir no interior da modesta habitação. Suspirou, quase feliz. Tinha chegado ao destino.
Pelo chão amontoavam-se roupas velhas, num desalinho que esboçava desinteresse e indiferença. Samir não estava só, naquela casa onde nada acompanhava ninguém. O sorriso no rosto de Samir era apenas um disfarce da decepção. Sentaram-se a um canto, procurando uma intimidade que se esvaia num burburinho miudinho e acalentava o riso contagiante das crianças que circundavam, num rodopio de brincadeiras. Como se a casa fosse muito grande. Como se o centro do mundo estivesse ali. Como se, lá fora, tudo se tivesse esvaziado de conteúdo e de certezas.
- Isto não está fácil por aqui. Prometem-nos ajuda mas ainda não vimos nada. Nesta casa estamos vinte e cinco pessoas. Somos dez famílias e mais alguns. Não há trabalho, nem para os de cá quanto mais para nós.
Amal sabia que não iria ser fácil mas não estava preparado para tanta incerteza. Queria ter ficado por lá, mas tudo se havia complicado com as bombas a destruírem tudo. Até os monumentos, que transpiravam milénios de história, tinham caído por terra. Compreendeu o braço em riste de Samir à sua chegada - tanta gente numa casa tão pequena.
- Eles dizem que nos querem ajudar, mas eu já não sei de que ajuda precisamos. Sinto falta do cheiro da minha terra, dos longos dias de sol e do cheiro acre do deserto. Sinto falta dum canto, duma sombra, duma fonte, duma raiz. Não sou de cá e não quero ser de lá. Não sou ninguém, numa terra em que quero recomeçar e continuo parado. Olham-me com desconfiança porque sou diferente e quero continuar diferente.
A paz que procuravam parecia estar longe daquele sítio e daquele lugar. Nesta terra não se escutavam bombas, mas, dentro de ambos, permanecera uma guerra latente que os afastara. Agora, no entanto, ser cristão ou muçulmano era apenas secundário. Estavam unidos pelo reencontro, numa terra distante da sua, e sabiam-se irmãos. Não importavam crenças, credos ou mistérios. Eram apenas dois homens, longe da sua terra.
Pelo rosto de Samir foram caindo duas grossas e silenciosas lágrimas. A raiva, que o seu rosto escondia, foi-se diluindo, num sorriso cúmplice que nascia lá longe, dentro dum sorriso que teimava instalar-se. Colocou uma mão sobre os ombros do amigo e murmurou-lhe baixinho:
- Vem comigo. Sabes por que te deixei entrar? Tenho uma surpresa para ti e sei que te vai agradar. Ela é o motivo daquele abraço que nos juntou, à tua chegada.
Caminharam, por entre o desalinho, até ao fundo da casa. Numa enxerga estirada a um canto dum quarto, uma mulher, com a cabeça descoberta, respirava, aumentando gradualmente um esforço que sabia necessário. Respirou fundo – tinha chegado o tempo de se fazer tempo, naquele desejo imenso de nascer numa terra livre. Um grito, um sufoco e um choro pequenino a clamar por vida!
Era Galeba, a mulher que vence, a sua mulher! Amal ajoelhou-se, num grito de esperança. Era o tempo em que o tempo estava a chegar. Ela havia-lhe prometido que o seu filho havia de nascer numa terra de liberdade. Ele já quase desistira de a encontrar.
À sua volta, foram chegando as partilhas de quem nada tem: uma manta para embrulhar a criança, uma estrela para iluminar o seu pedacinho de céu, uma lua para nela se pendurar, um cavalinho de madeira para correr o mundo e uma cítara para lhe relembrar aquela terra distante onde, um dia, havia de voltar.
Os dois amigos uniram-se num abraço e baniram as diferenças. Só então perceberam que a esperança renasce, em cada dia, sempre que um grito de uma criança se lança para o ar.

Amal esperou enquanto todos se deitavam. Olhou através da vidraça, a estrela da manhã que anunciava a alvorada. Descansou, e, sobre o branco manto da noite, ficaram esparramadas as vermelhas bagas do azevinho e com elas, o resto da sua vida. O frio tornava-se, agora, mais acolhedor, não o julgara possível, ainda assim, puxou para si o cobertor e com um sorriso estampado no rosto adormeceu com a certeza que o pai natal existe. A noite acabara de se instalar: era véspera de Natal.


Teresa Morais e Albertina Vaz ©2015,Portugal

10 comentários:

  1. Um turbilhão de imagens numa história quantas vezes repetida, um doce e um salgado que se misturam à espera de uma nova vida
    que justifique a miragem da terra prometida

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  2. De Ana Brito Lança recebemos o seguinte comentário:
    "Gostei imenso deste texto e a sua actualidade 'estremeceu-me'. Textos humanista que todos deviam ler pelo bem que faz."

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  3. Dois teclados direcionados para um objetivo comum serviram-se da perseverança dos refugiados, das diferenças religiosas e da força do natal para assim tratarem, eloquentemente, a vida, a paz e a liberdade. Lindo!

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  4. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Um texto que nos emociona pela realidade a que assistimos. "Que os canhões se silenciem, que as bombas fiquem guardadas nos arsenais, que haja maior partilha entre os homens e que todos possam ouvir a musica da paz."

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  5. A mensagem é mais intensa quando inserida num contexto de vivências. Magistral é encontrar uma forma tão bela de a transmitir. O apelo à unidade e fraternidade na diferença, ou para além dela, é uma vivência de Natal verdadeiro. A

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  6. Que importa a cor da pele, crenças ou religiões se o sangue que nos corre nas veias é todo igual?
    A Albertina já nos habituou a "coisas" magnificas mas esta a duas mãos é soberba. E então com um tema tão atual para refletirmos. Viveríamos com toda a certeza num mundo melhor se praticássemos o espírito de natal diariamente, porque lá diz o poeta "Natal é quando o homem quiser".
    i

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  7. Um texto que nos emociona até às lágrimas. Extraordinária mensagem de Natal (Paz na Terra a todos os Homens) Parabéns às autoras!

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