sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Lamento muito, mas soubeste-me a pouco

Albertina Vaz 

Encontrei-a num tempo frágil, quando a vida parecia ter quebrado todas as cordas e amarras que a prendiam a um ciclo que quis terminar. Falava-me de penas, de sonhos perdidos, de aves sem asas e de imagens sem cor. Falava-me de um espaço em que se sentira presa e de asas que batiam sem voar. Contava-me, minuto a minuto, a caminhada que não fizera no dia em que se prendera – sem o desejar – a uma estrada que não andava e a imobilizara entre o novo e o sol nascente.

Queria ser escutada – e falava como se eu não estivesse ali. Ouvia-a sofregamente como se o deserto – ali tão perto – paralisasse uma nuvem de sombras que não sabia ou não queria tornar reais. Sentíamos o esvoaçar da passarada à nossa volta. Quis apoiar aquela mulher que sentia a chuva a molhar-lhe o rosto e o sol a tisnar-lhe a pele. Outra vez.
Quis vê-la a voar e amei o silêncio da minha voz.

Pediu-me uma mão, um ombro para chorar, uma canção para recordar. E fizemos longas caminhadas ao nascer do sol, quando a brisa chegava e as confidências se enredavam num mar de luz e cor, quando tudo parecia ter parado e o mar se desmanchava em ondas de areia. Fui uma voz que escutava, um livro que se abria, um som que se irmanava. E percebia-a a renascer. Dei-lhe tempo e respeitei o seu desassossego. Quis vê-la a voar e amei o silêncio da minha voz.

O tempo, que tudo sara e tudo esquece, fez com que, um dia, me sentisse a mais e dei-lhe espaço para se revelar – aos outros e a mim.

Foi então que desvendei uma face escondida e alguém que realmente desconhecia – senti que uma flor se desfolhava e as pétalas caiam, como lágrimas colhidas em pingos de sal. Vi uma imagem encoberta, feita de raiva e ambição, espezinhando quem, ao seu lado, lhe estendia a mão. Deixou de sorrir – ria-se dos outros. Já não amava – fechava-se, num turbilhão de corridas e amores. Já não se ouvia, nem ouvia ninguém. Usava os sentimentos como quem amarrota uma folha de papel.

Voltei a encontrá-la, num redopio de fama, procurando auditório e público. Ouviam-na sem a escutarem, lisonjeavam-na sem a apreciar. Tinha olvidado o passado e sabia-se bem.  

Eu é que nunca percebi quanta falsidade lhe cabia no olhar e quanta desilusão semeara por entre as pétalas que espalhei pelo mar.

Albertina Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

8 comentários:

  1. A angústia - filha do isolamento, da ingratidão, do desamor... - num belo texto poético.

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  2. De Aldina Duarte recebemos o seguinte comentário:
    "Adorei!
    Parabéns Albertina!.."

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  3. De Cacilda Marado recebemos o seguinte comentário:
    "Está muito bom. Gostei muito."

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  4. De Ema Cordeiro recebemos o seguinte comentário:
    "Triste...mas tão lindo! Parabéns!"

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  5. Quanta sinceridade nestas linhas que acabei de ler!!!!!!
    Quanta mágoa existente!!!!
    Quanta necessidade de transportar para o papel o relato de uma passagem das nossas vidas!!!!
    Mas… foi a libertação. Agora o mundo no exterior espera-nos para outra aventura.
    Gostei muito.

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  6. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Um texto lindíssimo, onde o saber ouvir e o silenciar-se são condição primordial para que outros desfolhem as suas mágoas como pétalas de rosa que se esvão, suscitando um tranquilo amanhecer. Contudo, o tempo esbate a dor, mas a cicatriz permanece! Parabéns amiga por nos deliciar com esta escrita maravilhosa."

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  7. De Isabel Maria recebemos o seguinte comentário:
    "Belo texto poético.
    Gostei muito.
    Parabéns.
    Beijo"

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  8. Não lamento nada, mas soubeste-me a muito! Refletes e transmites a tua face de ser sensível, solidário, e como tu dizes "amei o silêncio da minha voz". Continua a ser muito bom ler-te mas desta vez, com um sabor especial, ouvi um grito que culminou em libertação. Só se liberta quem é livre!

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