quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

FÁBULA DA RATAZANA

Vitor Sousa 


Quatro da manhã.
O mordiscar da chuva nas telhas de barro criam uma sonoridade surda e embaladora que condiciona “o levantar” do Manel.
A farinha reclama a carícia das mãos e o forno já se impacienta com a chegada do pão na ânsia de o tornar dourado e estaladiço.
- Toca a levantar, Manel, dizia ele, de si para si.
Alem disso, constou-se que o doutor trazia um escrito novo, que prometeu ler em voz alta em primeira estância na padaria.
O sol esboçava já os primeiros ensaios de luz entre as decrepitas chaminés da velha fábrica de cerâmica que destronava o horizonte.
É um circo de vaidades...
Uma leve brisa varria as folhas dormentes do chão e o doutor, depois de uma leve pausa, meteu mão ao punho da porta e entrou.
Olhar discreto, franzino, semblante camiliano, bigode farto e tinto de fumo.
Após um tímido bom dia, inspira, rebusca um eco nas entranhas da alma e sem demora pega no papel que lê enfático de mão tremula:
- Ora, lá vai…
A política, na sua prática actual, é um manifesto de comportamento primário e mesquinho, para privilegiar o ego e o grupo.
Uma versão simplista de comportamento tribal, alheada das carências e necessidades urgentes de uma nação inteira.
É um circo de vaidades e veleidades obscuras.
Alegam-se laivos de importância desmedida na glorificação do ego.
Nada os detêm ao abrigo de uma qualquer legitimidade, de devassar e espezinhar a dignidade de um povo.

Duzentos e trinta indivíduos, adicionados de assessores, secretários, motoristas e da multiplicação da inutilidade, expõem a banalidade como assunto sério, perene e reabilitador.
Usam os patamares para transacções e negócios de contorno duvidoso. Estão todos bem na fausta mesquinhez da sua existência!
Por norma, conseguem provar a honestidade e a valência honrada de seu propósito, ou então assumem o glorioso gesto da demissão como acto extremo e elevado de excelsa remissão.
O espectáculo degradante dos sucessivos governos, sugere um desafio à inteligência do povo para apreciar a idoneidade dos políticos, ou então um ensaio geral sobre uma cegueira compulsiva.
Assumimos tudo como factos inquestionáveis e estabelecidos, como um castigo redentor de excessos, ou como uma cruz de ferro gravada a fogo no âmago da existência.
O politico (...) é a antítese
do homem livre.
Dificilmente, um político é deposto, ou responsabilizado com isenção.
A regra é demitir-se e reconduzir-se para funções de privilégio, sempre bem remuneradas.
O político na sua essência, por deficiência formativa e conjuntural, é a antítese do homem livre.
- Tem obsessão compulsiva do poder.
- Subjuga-se a parâmetros e directrizes.
- Inibe-se de flexibilidade e isenção.
- Bloqueia a evolução progressiva do pensamento.
- Prostitui-se com parceiros e compromissos.
No despertar faunístico de figuras remotas, carregadas de passado recente, afloram-me imagens de raposas velhas e ratazanas felpudas a chafurdar o nojo…
De voz emotiva e mão trémula, dobrou o papel, guardou-o no bolso e sem palavras saiu sorrateiro como entrou.

O Manel, de esgar boquiaberto e olhar vidrado de pasmo, até se esqueceu do pão!


Vitor Sousa ©2015,Aveiro,Portugal


4 comentários:

  1. O Evoluir congratula-se com a adesão de mais um novo autor. Seja bem vindo Vitor Sousa. Cá ficaremos à espera dos seus trabalhos, que vão deixar de ficar guardados em gavetas de portas trancadas.

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  2. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Um relato bem expressivo do nosso mundo que nos suscita uma certa revolta, por não podermos mudar este estado de coisas nocivas e horripilantes que entram pelas nossas casas a dentro. E nós, impotentes e quase sempre transformados em formiguinhas ordeiras, lá vamos levar mais um pedacinho de queijo à ratazana que gulosamente fica mais forte."

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  3. Um texto muito bem elaborado com a mão firme de quem sabe o que dizer e diz o que lhe vai na alma. Permito-me apenas duvidar de que, um qualquer “doutor” se disponibilize a fazer esclarecimento politico a todos os Manéis das padarias da nossa terra. Ratos efectivamente há muitos. E alguns são bem perigosos. Mas a convivência com os ratos não faz de nós ratos. Só a liberdade gera uma sociedade mais justa e só as pessoas sabem fazer a diferença. Eu ainda acredito nas pessoas. Parabéns Vitor, gostei muito deste seu trabalho e vou gostar de o ler mais vezes.

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  4. Ratos, ratazanas, ratazanas e ratos. Mas... precisam de ter alimento, certo? E quem lhes dá esse alimento?
    Tal e qual a mesma formiguinha que alimenta a ratazana, também nós precisamos de alimentar o nosso espaço. E como Albertina Vaz bem o diz, também tenho a certeza que vou ver muitos mais trabalhos do Vitor.
    Obrigada

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