quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

LOUVY


Conceição Cação 


Aquele frango a rodar, douradinho, ali mesmo à frente dos olhos. Sentava-se a contemplar o petisco, não arredava pé, ali ficava quietinho, só os olhos acompanhando o movimento rotativo do espeto. Tão perto e tão longe! O cheiro apetitoso enchia a cozinha e invadia-lhe as narinas, mas a robustez daquele vidro tornava o forno uma fortaleza inexpugnável. Uma provocação! Eles comiam do bom e do melhor e para ele sempre aquela ração. Que era a recomendada pelo veterinário, que tinha os nutrientes certos para se manter saudável e patati patatá. Pois sim, estava farto dessa conversa. Nas suas longas horas de lazer, a ampla cabeça repousando na almofada do Mickey surripiada do quarto das miúdas,  começou a congeminar uma ideia… E tomou uma decisão. Naquele dia, após o passeio matinal, recusou-se a tomar o pequeno almoço – a imagem daquela carninha suculenta povoava-lhe o cérebro, absorvia-lhe por completo o pensamento, só de olhar para aquela mistela pardacenta ficava com o estômago em rebuliço.
...ficava com o estômago em rebuliço
– Que se passa, Louvy? Estás sem apetite?
– Ão, ão, ão…
Tentou uma entoação de protesto, mas sem sucesso. Vendo bem, melhor assim – não levantaria suspeitas. Fingindo dormitar, ficou à espera duma oportunidade. E ali estava ela: depois de temperar uns bifinhos de vitela bem tenrinhos, a Belita foi à porta. Era uma vizinha. O cheiro inundava o corredor… Não havia que hesitar, não podia recusar essa dádiva do destino. Hum! Que aspeto delicioso! Mesmo crus, aposto que não são menos saborosos que o frango. E comeu, comeu, saboreando cada bocadinho como se fosse a satisfação dum último desejo dum condenado.
Ao regressar, a dona encontrou-o a tremer, a tremer descontroladamente.
– Ai Louvy, ainda não comeste nada hoje, deve ser fraqueza ou, então, estás doente! Terás febre? Bem, se calhar, lá temos de ir fazer mais uma visita ao veterinário.
Deu-lhe vontade de rir daquela ingenuidade, mas a consciência estava demasiado pesada. Que diabo, ele era um cão com princípios, princípios tão sólidos como aquele corpanzil de sessenta quilos! Era verdade que ainda se lembrava do tempo em que espalhava a roupa suja por toda a casa, arrancava os botões e fechos e arruinava todo o calçado que encontrava à mão. Mas isso eram traquinices da infância, águas passadas.
 – Ai, ai, ai como iria reagir a sua querida Belita? Perder a amizade dela é que não!
Atreveu-se a espreitar por uma frincha da porta – lá estava ela a abrir umas latas de salsichas. Um sorriso velhaco esboçou-se naquela bocarra. Ela não parecia muito zangada. Teve a confirmação daí a pouco – a proeza do Louvy foi o tema daquele almoço. Todos deram umas boas gargalhadas.

Estava perdoado.    


Conceição Cação ©2016,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. Foi como ver um video: as cenas vêem-se, as vozes ouvem-se e a dinâmica do texto é, como sempre, aquela a que nos habituou.
    Li de um fôlego e no fim apeteceu-me franguinho de churrasco.

    ResponderEliminar
  2. Ao deparar com o Louvy pelos meandros desta nossa escrita que queremos manter viva notei que, sem o desejar, me apeteceu sorrir e apertá-lo bem junto a mim. Nada como o mimo de um animal para acalmar o difícil do dias e a solidão das noites. Até me apeteceu ver o meu Briosa a correr outra vez para me roubar o tal franguinho de churrasco.
    Um texto muito real que sabe sempre bem ler. O Louvy é apenas um pretexto para mais um trabalho de excelente qualidade a que a São sempre nos habituou.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, amigos! Esta foi uma homenagem ao Louvy e à sua dona, a minha cunhada Belita, que já partiram. São doces recordações, saudades mitigadas pelas palavras que brotam do coração.

      Eliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...