domingo, 15 de novembro de 2015

A JUSTIFICAÇÃO

José Carreto Lages

Depois da vã procura de estacionamento, isento de taxa, conduziu o carro até ao parque. Entrou num lugar disponível entre duas viaturas. Não viu ninguém em redor. Suspirou ao tempo que atirava o saco na bagageira. Afastou-se para ir dar a aula na Escola onde ouviu o toque da campainha quando, em passo estugado, estava a atravessar o átrio. No parque, dobrado atrás de um carro, saiu um embuçado que, servindo-se dum afeiçoado gancho, abriu a porta e entrou na bagageira do carro. Lá encontrou o triângulo exigido pela norma rodoviária e o saco. No saco só estava um telemóvel e uma carteira de pele com os cartões bancários. Não havia dinheiro, o que ele procurava para a cocaína.
O embuçado
Em menos de uma hora ela reentrou no carro e saindo do parque, tomou a estrada habitual da sua residência.
A circular fora da cidade, o embuçado dobrou o assento traseiro e saiu da bagageira com a navalha espanhola empunhada para o corte.
- Dá-me duzentos euros. Duzentos euros ou corto-te – foi a ordem recomendada pelo fio da navalha encostada ao pescoço.
- Eh…
- Duzentos euros ou corto-te.
- Não tenho esse dinheiro – conseguiu ela dizer.
- Vais direitinha à Caixa Multibanco, invertes a marcha e é como eu mandar, okay? Como eu mandar. Nada de sinais de luzes ou corto-te o “garganil”…
 Sob a pressão de uma mão na cabeça e o fio da navalha acatou a ordem.
- Viras à esquerda, que aí, à frente, há um Multibanco. Vais devagar e paras ao lado do Banco ou vais magoar-te. Aí, aí, para… Vais ao Multibanco e trazes o dinheiro.
Ela sai do carro, como um robot. Não vê ninguém a quem se socorrer. No Multibanco faz o código devagar, e retira 100 euros. Ouve um carro a aproximar-se. Corre, colocando-se na trajectória do carro, sujeita a ser atropelada. Os travões cedem à pressão do pé, e com grande ruído o carro agacha-se e evita o embate. Dele saem, ar aziago, dois homens robustos.
- Mas o que é isto? - a senhora quer matar-se?
Ela agarra-se a um dos homens.
- Ajudem-me… ele mata-me. Ali…- apontando
E vêem o carro partir.
- É um ladrão drogado - protesta ela. E no despejo de palavras sai o drama.
Pelo telemóvel que lhe cederam contacta o marido, também professor, a dar aulas noutra escola, que chegou breve. Sabendo que no carro estava o saco da mulher, telefona para o telemóvel, que toca, toca, toca …
Por fim, uma voz que atende. O marido, procura descontraí-lo e propõe-lhe:
- Nada farei se devolver o carro em local a combinar.
 Ele aceita desde que lhe entreguem 5.000,00€ em notas, em local a indicar por ele.
- O carro já não é novo, não vale tanto dinheiro; - e procurando adoçar-lhe as intenções: -
ç
nem tenho tanto dinheiro, vivo com a minha mulher apenas do trabalho, com dois filhos para educar, ainda crianças, não posso arranjar mais de 500,00€.
Ele exige 5.000,00€ e o marido mantém os 500,00€. Ele baixa para 1.000,00€ e o marido aceita.
A exigência é de entregar o dinheiro em notas, dentro de um saco de plástico preto, em hora e local precisado. Ninguém estaria no local e o marido iria só. Deixaria o saco e partiria. Meia hora depois, poderia ir buscar o carro. Negociação aceite.
Ao chegar perto do local, surge novo telefonema a mudar o local da entrega. O professor, coloca algumas objeções invocando a dificuldade de ir ao outro local, que é pinhal ermo, mas perante a intransigência, acaba por aceitar.
À hora precisa o professor estava lá. Olhou em redor, e ninguém. Alguns minutos e saiu do carro com o saco de plástico preto.
Coloca o saco no local indicado, na berma do pinhal, sob uma grande pedra e parte.
Minutos depois, sozinho, um carro, lentamente, chega ao pinhal. Não se vê ninguém e o condutor sai. Caminha, olhando, à esquerda e direita, com hesitantes passos. Vê uma ponta do saco debaixo da pedra grande. Avança e baixa-se para remover a pedra e apanhar o saco.
Dois agentes da polícia, previamente avisados e escondidos deitam-lhe a mão e algemam-no de imediato para ser apresentado ao juiz da comarca.
No tribunal, ele desabafa:
- Isto não se faz. Traíram-me, senhor dr. Juiz. Eu conheço muito bem a senhora, que é muito boa e pedi-lhe uns trocos para uma sopinha. Ela disse que não tinha dinheiro, que o iria levantar ao Multibanco. Quando me trazia o dinheiro, dois malandros atiraram-se a ela e eu, cortei-as, tive que fugir.
Uma traição - um pesadelo...
- Porque fugiu com o carro? - perguntou o juiz.
- Por medo. Logo que telefonaram eu disse que entregava o carro, para que é que eu queria o carro?
- Mas exigiu dinheiro para o fazer?
- Dinheiro? - não. Eu pedi os documentos. Não podia devolver o carro sem documentos. A polícia podia apanhar--me e ser autuado se estivesse sem documentos, mas levaram-me pedaços de jornais velhos. Saiba o senhor que me traíram.
- Vamos já averiguar o que se passou - concluiu o juiz.
Subitamente, o despertador acordou-me daquele pesado torpor. E senti-me aliviado ao correr da persiana e ver que o céu estava limpo e ameno para mais um dia criador.


José Carreto Lages ©2015,Aveiro,Portugal

4 comentários:

  1. COMO SEMPRE, UM TEXTO SURPREENDENTE E QUASE PERFEITO, NUMA LINGUAGEM ESPECIAL, PORQUE O ESTILO É MUITO ESPECIAL!

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  2. De Laura Carvalho recebemos o seguinte comentário: "Infelizmente esses "pesadelos"acompanham-nos muitas vezes."

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  3. Um criminoso a representar o papel de vítima. Um pesadelo que frequentemente encontra correspondência na realidade. Felizmente, o sol raiou e iluminou o final desta história muito bem contada.

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  4. Desta vez, quem já nos habituou a um estilo clássico, bem requintado, decidiu surpreender com um típico policial repleto de ritmo, obviamente, recheado de linguagem apropriada. Um final muito bem encontrado:o escritor foi acordado pelo jurista que entendeu não dificultar a vida ao juiz.

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