Palmira Alvor Figueiredo
Deu a centésima escovadela à
pelagem. Mirou, com um trejeito altaneiro e prazenteiro, a imagem que o espelho
das águas calmas e cristalinas lhe devolvia. Sorriu, plenamente satisfeita de
si mesma. Um toque discreto de batom e um nico de pó de arroz completavam as
sombras das invejas que lhe rasgavam os olhos. Era belíssima: curvas acentuadas
no perfeito limiar de uma figura esbelta e estilizada e um pescoço longo com
ausência dos papos que a gravidade baixava à idade. O padrão axadrezado da
esplendorosa roupagem que a vestia acentuava-lhe o andar bamboleante que, a par
com a sua juventude pressurosa, enlouquecia os machos deixando-os de água no
bico.
Avançou, confiante, rumo ao
terreiro onde a população se ia reunir nessa noite. Sim, a sua presença iria, muito
seguramente, ser notada. Provocaria ainda mais falatórios e invejas, bem o
sabia, mas esse incidir de toda a atenção sobre a sua pessoa servia-lhe de
lenitivo – uma vingança que se saboreia devagar, degustando-lhe bem o sabor
saltitante sobre as papilas, acendendo-lhe o fogo no olhar – acalmava-lhe as
chagas que as ressabiadas da aldeia lhe deixavam no seu peito farto e firme.
Até a sua própria mãe se lhes juntava nas críticas:
- Não te emboneques tanto
que vais acabar mal!
Já nem a ouvia. Pensava ela
que queria viver a sua vida pacata, cheia de narizes ranhosos sempre a
puxar-lhe a bainha da saia, sem nada mais a que aspirar que não a comezinha
vida familiar, aquele vegetar de existência sem aventura nem expectativa? Não!
Ela estava guardada para voos mais altos. E bem exercitava as asas,
diariamente, tentando ganhar força para dar vida a essa fuga. Queria o céu
cintilante de um luar estrelado de um voo livre, não esse esgravatar de terra,
esse castrante catar de segurança e amparo. Não! O seu corpinho bem cuidado não
seria destruído nessa social maternidade de apatias, nessa feitoria de
sossegos. Bastaria quando morresse. Até lá tinha todo um mundo para descobrir
para além dos limites que o populacho conhecia. Por isso se cuidava, por isso
apenas debicava de uma alimentação saudável que lhe brilhava e amaciava a pele.
Não seria como as outras que
à força de esgravatar tudo à sua frente acabavam com pele de galinha ou de
casca de laranja. Feias e enjeitadas pela vida e ressabiadas, ainda por cima.
Invejosas, quadrilheiras e mal amanhadas. Não! A beleza facilita a vida e era
essa a sua arma. Ela até já tinha notado os olhares gulosos que o Sr. Manuel
lhe deitava quando a via passear os meneios da dança do ventre que a Fatinha –
a promíscua da região – lhe tinha ensinado. Renegavam a Fatinha como se de
peste se tratasse mas aquela é que a sabia toda! Só não tinha beleza da qual se
aproveitasse, graças a uma vida desregrada de deboche constante. Eram só
noitadas: quem a queria, era vê-la à noite a espraiar-se lânguida nas sombras
das matriarcais peruas - que a rechaçavam - enquanto se comprazia com tudo o lhe
arrastava a asa, bebendo a vida em largos tragos. E a sua mãe, impaciente,
continuava:
- Faz como todas nós, bica o
que puderes, sem escolha. É muito perigoso o que fazes. Olha que vais acabar
mal: ainda jovem e tenra! Tens que te conformar à fatiota mal engendrada de
todo o povo! Nessa igualdade reside o segredo da longevidade e de uma boa vida.
Balelas! Nessa noite o
populacho reunia-se para debater medidas contra os abusos habituais pelo Natal.
Era preciso planear bem a coisa ou muitos cairiam por essa quadra! Tinham que
se unir e reagir contra o poder instituído que os abatia a esmo. Era preciso erguer
defesas. Ainda era cedo, tinham tempo para planear algo. Sugestões?!
Alice meneou-se enquanto
tossicava para chamar a atenção:
- Porque não fugimos todos
agora?
Parecia-lhe tão óbvio! Nesse
momento sentiu um toque suave nas espáduas, chamando-
lhe a atenção. O Sr.
Manuel, com um sorriso aguado de gulosa avidez, convidou-a para jantar e
pediu-lhe que a acompanhasse. Ufana e orgulhosa daquela atenção, nem pensou
duas vezes e segui-o ouvindo, em pano de fundo, os gritos lancinantes de sua
mãe clamando por si, enquanto toda a bicharada fugia sem rumo, como baratas sem
cabeça. Não ligou, era o seu momento, o tal que mudaria a sua vida.
Chegados à cozinha, o Sr.
Manuel afagou-a e encheu-lhe uma taça de um líquido borbulhante e quase incolor.
Alice, ainda surpresa, sacudiu-se um pouco, com o bico ajeitou as penas e pavoneou
a vaidade num espampanante abrir da cauda. Bebericou, degustou e bebeu. Bebeu
até as patas se lhe soltarem de cuidados, em danças tontas. E dançando a
meneada lambada pôs a cabeça no cepo. Ouviu, mais do que sentiu, a frieza dura
do machado no seu pescoço. E, por um tempo, o seu corpo continuou a dançar acabando
por cair junto aos casacos das castanhas que a iam acompanhar. Era o verão se
S. Martinho.
Palmira Alvor Figueiredo ©2015,Portugal
Hoje, no Evoluir, um trabalho duma nova autora. Palmira Alvor Figueiredo, a quem saudamos por se juntar a quem faz da escrita o seu prazer. Um texto excelente que nos prende da primeira à última linha e que, sem se revelar, nos conduz por um labirinto que se desvenda linha a linha, num crescendo de cor e fantasia. Obrigada Palmira, é um enorme prazer tê-la connosco.
ResponderEliminarMuito obrigada por me terem aceite no grupo e obrigada pelas suas palavras de apreço. Espero que esta relação venha a ser tão profícua quanto - pelo menos - o gosto que tenho em escrever estes textos. ;)
EliminarDe Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar" Um texto que nos sensibiliza!.. Podendo no entanto, ser visto por outro prisma como: depois do golpe final a bela Alice encheu de alegria aqueles que à mesa se reuniram para festejar a festa das festas. O NATAL."
De Júlia Labrincha recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Gostei muito e parabéns à autora."
De Laura Carvalho recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Lindo,obrigada e "viva o S.Martinho"
Uma prosa fluente, leve e convidativa. Uma autora que sabe o que quer e como o fazer. Quem a lê vai num crescendo quase sem querer e sente-se empurrada para continuar a leitura até que ela se revele. E, sem se revelar, o texto desvenda-se num prato suculento à volta de algumas castanhas. Obrigada pelo seu trabalho, Palmira, gostei mesmo muito.
ResponderEliminar