José Carreto Lages
Depois da vã procura de estacionamento,
isento de taxa, conduziu o carro até ao parque. Entrou num lugar disponível
entre duas viaturas. Não viu ninguém em redor. Suspirou ao tempo que atirava o
saco na bagageira. Afastou-se para ir dar a aula na Escola onde ouviu o toque
da campainha quando, em passo estugado, estava a atravessar o átrio. No parque,
dobrado atrás de um carro, saiu um embuçado que, servindo-se dum afeiçoado
gancho, abriu a porta e entrou na bagageira do carro. Lá encontrou o triângulo exigido
pela norma rodoviária e o saco. No saco só estava um telemóvel e uma carteira
de pele com os cartões bancários. Não havia dinheiro, o que ele procurava para
a cocaína.
O embuçado |
Em menos de uma hora ela reentrou no carro
e saindo do parque, tomou a estrada habitual da sua residência.
A circular fora da cidade, o embuçado dobrou
o assento traseiro e saiu da bagageira com a navalha espanhola empunhada para o
corte.
- Dá-me duzentos euros. Duzentos euros ou
corto-te – foi a ordem recomendada pelo fio da navalha encostada ao pescoço.
- Eh…
- Duzentos euros ou corto-te.
- Não tenho esse dinheiro – conseguiu
ela dizer.
- Vais direitinha à Caixa Multibanco, invertes
a marcha e é como eu mandar, okay? Como eu mandar. Nada de sinais de luzes ou
corto-te o “garganil”…
Sob a pressão de uma mão na cabeça e o fio da
navalha acatou a ordem.
- Viras à esquerda, que aí, à frente,
há um Multibanco. Vais devagar e paras ao lado do Banco ou vais magoar-te. Aí,
aí, para… Vais ao Multibanco e trazes o dinheiro.
Ela sai do carro, como um robot. Não
vê ninguém a quem se socorrer. No Multibanco faz o código devagar, e retira 100
euros. Ouve um carro a aproximar-se. Corre, colocando-se na trajectória do
carro, sujeita a ser atropelada. Os travões cedem à pressão do pé, e com grande
ruído o carro agacha-se e evita o embate. Dele saem, ar aziago, dois homens
robustos.
- Mas o que é isto? - a senhora quer matar-se?
Ela agarra-se a um dos homens.
E vêem o carro partir.
- É um ladrão drogado - protesta ela. E no despejo de
palavras sai o drama.
Pelo telemóvel que lhe cederam contacta o
marido, também professor, a dar aulas noutra escola, que chegou breve. Sabendo que no carro estava o saco da mulher,
telefona para o telemóvel, que toca, toca, toca …
Por fim, uma voz que atende. O marido,
procura descontraí-lo e propõe-lhe:
- Nada farei se devolver o carro em
local a combinar.
Ele aceita desde que lhe entreguem 5.000,00€
em notas, em local a indicar por ele.
- O carro já não é novo, não vale tanto
dinheiro; - e
procurando adoçar-lhe as intenções: -
nem tenho tanto dinheiro, vivo com a
minha mulher apenas do trabalho, com dois filhos para educar, ainda crianças,
não posso arranjar mais de 500,00€.
ç |
Ele exige 5.000,00€ e o marido mantém
os 500,00€. Ele baixa para 1.000,00€ e o marido aceita.
A exigência é de entregar o dinheiro
em notas, dentro de um saco de plástico preto, em hora e local precisado.
Ninguém estaria no local e o marido iria só. Deixaria o saco e partiria. Meia hora
depois, poderia ir buscar o carro. Negociação aceite.
Ao chegar perto do local, surge novo
telefonema a mudar o local da entrega. O professor, coloca algumas objeções
invocando a dificuldade de ir ao outro local, que é pinhal ermo, mas perante a
intransigência, acaba por aceitar.
À hora precisa o professor estava lá.
Olhou em redor, e ninguém. Alguns minutos e saiu do carro com o saco de
plástico preto.
Coloca o saco no local indicado, na berma
do pinhal, sob uma grande pedra e parte.
Minutos depois, sozinho, um carro,
lentamente, chega ao pinhal. Não se vê ninguém e o condutor sai. Caminha,
olhando, à esquerda e direita, com hesitantes passos. Vê uma ponta do saco
debaixo da pedra grande. Avança e baixa-se para remover a pedra e apanhar o
saco.
Dois agentes da polícia, previamente
avisados e escondidos deitam-lhe a mão e algemam-no de imediato para ser
apresentado ao juiz da comarca.
No tribunal, ele desabafa:
- Isto não se faz. Traíram-me, senhor
dr. Juiz. Eu conheço muito bem a senhora, que é muito boa e pedi-lhe uns trocos
para uma sopinha. Ela disse que não tinha dinheiro, que o iria levantar ao
Multibanco. Quando me trazia o dinheiro, dois malandros atiraram-se a ela e eu,
cortei-as, tive que fugir.
Uma traição - um pesadelo... |
- Porque fugiu com o carro? - perguntou
o juiz.
- Por medo. Logo que telefonaram eu
disse que entregava o carro, para que é que eu queria o carro?
- Mas exigiu dinheiro para o fazer?
- Dinheiro? - não. Eu pedi os documentos. Não podia
devolver o carro sem documentos. A polícia podia apanhar--me e ser autuado se
estivesse sem documentos, mas levaram-me pedaços de jornais velhos. Saiba o
senhor que me traíram.
- Vamos já averiguar o que se passou - concluiu o juiz.
Subitamente, o despertador acordou-me
daquele pesado torpor. E senti-me aliviado ao correr da persiana e ver que o
céu estava limpo e ameno para mais um dia criador.
José Carreto Lages ©2015,Aveiro,Portugal
COMO SEMPRE, UM TEXTO SURPREENDENTE E QUASE PERFEITO, NUMA LINGUAGEM ESPECIAL, PORQUE O ESTILO É MUITO ESPECIAL!
ResponderEliminarDe Laura Carvalho recebemos o seguinte comentário: "Infelizmente esses "pesadelos"acompanham-nos muitas vezes."
ResponderEliminarUm criminoso a representar o papel de vítima. Um pesadelo que frequentemente encontra correspondência na realidade. Felizmente, o sol raiou e iluminou o final desta história muito bem contada.
ResponderEliminarDesta vez, quem já nos habituou a um estilo clássico, bem requintado, decidiu surpreender com um típico policial repleto de ritmo, obviamente, recheado de linguagem apropriada. Um final muito bem encontrado:o escritor foi acordado pelo jurista que entendeu não dificultar a vida ao juiz.
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