domingo, 27 de setembro de 2015

Uma tela em branco

Albertina Vaz 


Peguei numa folha – em branco. Dolorosamente branca. Sem um risco, um traço, uma letra.

Era uma folha como outra qualquer. Nem grande, nem pequena. Nem lisa, nem machucada. Uma folha em branco à espera de palavras, ou de traços, ou de cores. E nela falava o silêncio e o silêncio não tinha cor.

Então pintalguei-a de azul e inundei-a de mar. E o mar era uma paz sem limites e uma mancha azul que se alastrava no horizonte. Depois colori-a de verde e fiz nascer um campo de erva fresca, onde duas crianças saltitavam correndo em direção ao infinito.

E fiquei feliz com a minha folha. Já não era uma folha em branco.

Depois procurei os sons e enchia-a de cantos e de poesia, Dois bancos de jardim. Um casal de mãos dadas e as promessas de amor acarinhadas pela esperança duma vida diferente.

A seguir fui procurar os cheiros e soube-me a erva cidreira e a rosmaninho e fiz uma canção de roda com as crianças que me ajudavam a caminhar e soltavam gargalhadas estilhaçando o silêncio e quebrando as barreiras.

E nela falava o silêncio.
Era naquele momento uma folha perfeita – havia o mar, um campo verdinho, duas crianças a brincar, um casal a sonhar e uma avó a reviver. Não faltava lá nada. Era uma folha cheia de vida que se soltara do branco e se enchera de cor.

Um dia porém vieram uns senhores que sabiam de tudo e ditavam as leis. Foram eles que escreveram as palavras e foram apagando as cores. O campo deixou de ser verde porque eles não queriam que fosse cultivado. Os jovens disseram-se adeus, num abraço profundo, e partiram cada um em direções diferentes. E as lágrimas que se soltaram foram inundando os campos e salgando os rios e secando as fontes. As canções já não falavam de esperança e as crianças deixaram de cantar.

Fiquei a olhar a minha folha e quis pintar os pés da avó mas só consegui seguir-lhe os passos, quis descobrir o seu olhar mas só descortinava a sua mente, só e envelhecida, quis pentear-lhe os cabelos mas apenas consegui ler-lhe o  pensamento, quis abrir a sua boca mas só calei as suas palavras, quis pegar nas suas mãos e apenas encontrei o seu destino, quis beijar o seu olhar mas já não ouvia as palavras.

Lavei meu rosto numa gota de orvalho – voltei ao início. Tenho de começar tudo outra vez. 

Albertina Vaz ©2015,Aveiro,Portugal

4 comentários:

  1. De Teresa Sequeira recebemos o seguinte comentário:Que bonito, Albertina, parabéns!

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  2. De Cacilda Marado recebemos o seguinte comentário: "Que lindo texto!"

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  3. De José Carreto Lages recebemos o seguinte comentário: "Continua o teu sonho e verás que vale a pena não desistir.A poesia jogando com os elementos da natureza e as pessoas.Parabéns musa."

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  4. As telas, retratos de vida e de vidas. Umas repletas de cor. Outras, sombras escurecidas de vidas pálidas e rotineiras para quem o sol parece não ter nascido. Quem dera, como se fosse possível, e a tua bela prosa poética sugere, recomeçar tudo de novo sem qualquer hipótese de intromissão dos tais senhores que tudo sabem e ditam leis.

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