quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Sonho de criança

Maria Jorge 

Estávamos em meados da década dos anos cinquenta.
Apesar de a aldeia estar situada no litoral do nosso país, o seu desenvolvimento era muito lento. Com uma grande área de areia roubada ao mar, as pessoas tinham de transformar os terrenos áridos em campos férteis já que daí vinha a sua subsistência. Os recursos eram poucos e lutava-se pela sobrevivência. A exemplo do restante país, havia uma elevada percentagem de analfabetismo nos adultos (principalmente as mulheres, não era obrigatório frequentarem a escola). 
Os homens, os mais corajosos, iam
em grandes barcos...
Os homens, os mais corajosos, iam em grandes barcos, por tempo indeterminado, para os mares de águas gélidas da Gronelândia e Terra Nova para a pesca do bacalhau donde regressavam quando o barco tivesse o peixe necessário; outros emigravam, na sua maioria para Terras de Vera Cruz, donde alguns nunca mais voltaram nem davam notícias; os talvez menos aventureiros dedicavam-se à agricultura e pouco mais.
Para todos, para os que iam e para os que ficavam, a vida era muito dura. 
– Bom dia Sra. Augusta. A Leninha está?
– Bom dia menina. Está sim, mas hoje está muito cansada. Sabes como é, dia que vai ao médico… e hoje foi fazer mais uma radioscopia… mas vai lá, vai lá ter com ela.
– Trago um recado da Professora Julieta.
– Entra, entra, já sabes o caminho. Se estiver a dormir… deixa-a ficar. Depois vens cá mais tarde.
Leninha, uma adolescente com tantos sonhos a povoarem a sua mente, não podia ser igual a tantas outras jovens da sua idade já que um grave problema de saúde a retinha quase sempre no seu quarto. Aquela tosse maldita não a deixava em paz e com tanta falta de forças não podia fazer o que mais gostava.
Um dia os pais levaram-na ao médico e o diagnóstico foi terrível. A tuberculose entrou na
Porque?Porquê eu?
vida daquela família de tão parcos recursos…
– Porquê? Porquê eu? – Perguntava-se a si própria.
Tinha apenas 15 anos…e os seus sonhos? Embora gostasse de poder continuar a estudar teve de ficar apenas com a instrução primária, porque os pais, que viviam exclusivamente da lavoura, não tinham possibilidades económicas; gostava de andar de bicicleta, jogar à macaca, conviver com as jovens da sua idade; bordar; fazer o seu enxoval e sonhava… sonhava com o seu príncipe encantado. Enfim, queria ser igual a tantas jovens da sua idade…mas não podia. Porque haveria de ser diferente?
Era católica. Agarrou-se ao seu Deus e pedia-lhe todos os dias saúde porque ainda tinha tanta coisa para fazer. Afinal pedia-lhe tão pouco…Na irreverência própria da sua idade quase era egoísta e um pouco de inveja apoderava-se do seu ser. Mas seria mesmo assim?  
O médico ainda opinou levarem-na para o Caramulo, talvez aí se pudesse curar, mas certezas não havia nenhumas e esperanças eram muito poucas, já que o seu estado era muito avançado. Depois de muito pensarem, os pais decidiram que não iria e que tudo fariam para a sua filha ter um resto de vida digna, pelo menos carinho e amor não lhe iria faltar. Depois… a ciência faria o resto. O lugar onde vivia era muito pequeno e a notícia espalhou-se rapidamente. As meninas da escola primária comentaram com a sua professora; uma onda de solidariedade apoderou-se das pessoas. Uns davam ovos para gemadas, outros organizaram-se para, uma vez por semana, irem ao matadouro buscar sangue de cavalo. Todos queriam ajudar a Leninha. E a Professora Julieta?
Não foi necessário muitas palavras porque Leninha, uma jovem bastante inteligente e
Uma das suas paixões era a leitura.
perspicaz apercebeu-se rapidamente da sua doença, mas pouco sabia sobre a mesma, aliás raramente ouviu falar dela: na sua época quase era um tabu e raramente as pessoas falavam abertamente sobre a mesma. Uma das suas paixões era a leitura e era através da sua professora da instrução primária, Professora Julieta, que conseguia livros emprestados. E foi assim que também conseguiu alguns para melhor se inteirar da doença e como havia de lidar com a mesma.
Estava resignada, tinha de aproveitar muito bem o pouco tempo, ou talvez não, que lhe restava.
Com um livro no regaço, Leninha, de cabeça pendente para o lado esquerdo, dormia um sono muito leve. Suavemente, Mariazinha tocou-lhe no ombro, contrariando as instruções da Sra. Augusta.
– Leninha, Leninha.
– Mariazinha, que bom ver-te. Senta aí.
– Não me posso demorar, vim cá no intervalo. A Professora Julieta quer falar contigo.
– Sabes o que ela me quer? Hoje não posso, estou muito cansada.
– Não sei, mas ela quer muito falar contigo.
– Então diz-lhe que amanhã de manhã vou lá, está bem?
Mariazinha sabia muito bem o que a Professora Julieta lhe queria dizer, mas era surpresa.
A outra era pintar.
Além da leitura, outra das paixões da Leninha era desenhar a lápis de carvão e pintar. Os livros, esses ainda conseguia arranjá-los, mas agora pintar… era muito mais difícil.
– Professora Julieta, posso entrar?
– Podes, podes, senta-te aqui ao pé de mim. Então como tens passado?
Sabendo da sua paixão pela pintura, fez-lhe uma proposta. Iria arranjar todo o material necessário para que pudesse pintar. Escolheram um cantinho na sala, junto da janela e ligeiramente afastada das restantes alunas para não perturbar as aulas, duas vezes por semana e sempre que pudesse, a Leninha iria para a escola primária e com as instruções da Professora Julieta pintaria o que lhe apetecesse. Usaria uma máscara para evitar o cheiro das tintas e também para proteger as crianças de qualquer eventual contágio.
Começou por pintar borboletas.
Começou por pintar borboletas em campos verdejantes. A variedade das cores era outra das suas paixões. Por baixo do vidro eram colocadas as fotografias, recortes de revistas ou o que quer que fosse. Todos os contornos eram feitos com a caneta de tinta-da-china e o restante era pintado com guaches.
A sua paixão pela leitura levou-a a sonhar com uma viagem ao Egito. Desenhou com lápis de carvão diversas pirâmides e toda a sua envolvência naqueles desertos áridos.  
A Professora Julieta encarregou-se de, depois de terminados, mandar emoldurar os quadros e as meninas de os vender aos familiares e amigos. O proveito seria para comprar mais material e o restante reverteria para a Leninha.  
Andava tão entusiasmada com o que estava a viver que aquelas horas que passava na escola davam para esquecer a sua doença. Aquele seu compromisso fazia-a sair de casa, rir e brincar um pouco com a sua situação, até parecia ser uma jovem dita “normal”. Sentia-se cansada? Claro que sim, e cada vez mais, mas o que estava a fazer compensava tudo. Queria aproveitar ao máximo aqueles momentos e vivê-los como se não houvesse amanhã. Para os pais parecia um milagre. Leninha era feliz.  
...quatro pombas brancas
Um dia, pediu à Professora que lhe arranjasse uma fotografia de uma pomba branca. Apesar de ter ficado intrigada com o estranho pedido, acedeu.
Num quadrado de vidro, pintou um campo verdejante com quatro pombas brancas com as suas asas bem abertas que seguravam um manto cor-de-rosa envolvendo uma criança toda vestida de branco. Depois de pronto, entregou-o, como habitualmente, à Professora Julieta pedindo-lhe uns dias de descanso. 
Passou esse período e para espanto da classe, Leninha não apareceu. Seguindo as instruções da Professora Julieta, Mariazinha foi saber da Leninha. Já não encontrava forças para sair da cama. A sua situação tinha piorado terrivelmente nos últimos dias.

Tinha chegado ao fim a missão de Leninha e o resultado da venda do último quadro foi a homenagem da Professora Julieta e das sua alunas na aquisição do cantinho para descansar em paz.

Maria Jorge ©2015,Aveiro,Portugal

2 comentários:

  1. Que lindo texto, Maria. Fez-me ir lá atrás aos anos em que havia muito a tuberculose. Eu também fui retirada da companhia da minha mãe devido a essa terrível doença. A alimentação era pobre em vitaminas e também os poucos recursos à medicina...era uma tragédia.

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  2. Uma escrita fluente, que se lê de um fôlego, que nos transmite sempre sentimentos de vida e da vida. Era muito difícil ser-se criança e ser-se doente nesses tempos. Pena é que, infelizmente, continue a ser muito complicado ser-se doente, num mundo em que o olhar dos outros aponta a deficiência em vez de aceitar a diferença. Gostei muito Maria, como sempre gosto de tudo o que escreves. Porque é uma escrita viva e que se vive todos os dias.

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