terça-feira, 7 de outubro de 2014

A dor de partir e o imperativo de chegar


Albertina Vaz

Vi-o caminhar, lenta e pesadamente, pelas ruas estreitas da cidade quase deserta. Olhava cada janela, cada vidraça empoeirada, cada vaso de flores pendendo através da madeira carcomida da varanda. Parecia querer agarrar o que lhe escapava, prender e que se desatava, apanhar o que lhe fugia. Nem sequer compreendia o que girava à sua volta. Só sabia que não encontrava nem o fim da estrada, nem a luz na calçada, nem o mar que se afundava por entre a areia dum deserto, ali, à beira da porta.
Quem te deu o direito de parar? – pensou. Quem te deu o direito de matar o pássaro que
...o pássaro que reclama voos...
reclama voos dentro de ti e exige cortar a sombra que teima em se instalar? Quem te permitiu carregar, nas tuas costas, o peso de um mundo que te despreza e te angustia?
Já não sirvo para nada, foi o que arremessaram: e, no entanto, continuo a ouvir o rasgar das giestas e o cantarolar dos patos que invadem o lago e semeiam gramados por entre as flores dos nenúfares no rio. Sinto cá dentro, uma dor que se instala e uma chuva miudinha que invade o meu peito e rebenta como uma estrela que explode em luzes de mil e uma cores.
Já não sei que fazer – esta hesitação é o que mais me dói – não sei se partir, se ficar; não sei se caminhar, se parar; não sei se gritar, se calar.
As ruas da calçada fogem sob o desejo de ficar – a filha que queria ver crescer, a mulher que se esgota nas casas dos outros por um prato de sopa, a mãe que não voltará a beijar. E quanto tempo vai decorrer, até que eu volte a pisar este caminho sem fim, em que me sinto e me remanso, em que nasci e cresci, em que lutei e perdi?
Perdi aquele pôr do sol ...
Perdi – o quê? Perdi tudo e perdi nada, perdi as giestas a cantarolar e o bater de asas dos patos no debruado da ria, perdi aquele por do sol de cores demasiado quentes e a neblina do fim de tarde que faz cantar as árvores e deslizar os ramos dos ninhos acabados de fazer; perdi aquele mar azul que se encapela e nos prende sem agarrar.
Perdi, ou vou perder? Aquelas janelas pequeninas com cortinas debruadas a renda feita à mão, aquele azul pintado no meio de um negro, escuro e cinzento, duma parede que se ergue entre o que se sente e o que se diz, entre o que se quer e o que se faz, entre o que se sonha e o que se realiza. Já nada resta – nem lenha para acender a fogueira, nem um pão na mesa, nem uma flor.
E caminho para onde, para quem, para quê? O que importa é que vou deixar para trás a minha identidade, as raízes que me prendem ao chão, os vozes dos que amei e dos que desamei, os cheiros dum campo de trigo a ondular num fim de tarde e as espigas a lembrar um mar manso, que se desfaz em ondas de espuma e areia.
Vou partir? Vou partir à procura do que não tenho, do que tenho de ter e do que me é negado, aqui e agora. Tinha tudo para arranjar um canto no meu peito e ver os pássaros crescer, tinha tudo para entrar num barco e estraçalhar ondas e velas e construir castelos onde as princesas assomassem às janelas, tinha tudo para poder navegar num espaço meu, que queria nosso e queria teu.
E, para meu espanto, disseram-me: aqui, não há mais lugar! Aqui só ficam os que calam a
Aqui, não há mais lugar!
voz e emudecem a dor que lhes trespassa o peito e o abre em ferida – devagar, para doer um pouco mais, para mais depressa o silenciar.
Dei conta que há por aí quem me chame louco: serei talvez, sim, mas, se o sou, é porque tinha tanta vontade de subir a uma árvore, colher uma laranja no pomar e aproveitar um fim de tarde, quando o sol parece uma bola incandescente que se dilui no azul do horizonte e se mescla com o outro lado do mar. Será que o verei se partir? Será que só aqui ele tem os tons que o tornam único ao nosso olhar?
Um coreto no meio da praça, as crianças a deambular em brincadeiras de roda e em jogos de corrida; um baloiço a voar, um lago cheiinho de peixes, um jardim, uma floresta e o canto silencioso duma multidão de aves que esvoaçam em bandos onde, quem vai à frente despedaça o espaço e volta atrás, para que outro tome o seu lugar.
...cada momento é uma chegada que
nos coloca numa nova partida.
Às vezes não falo com as pessoas para ver se sentem a minha falta mas entendo que calam a sua voz para que a dor da separação seja percebida como uma necessidade urgente que tenho de enfrentar. O que deixei de dizer nem sempre é o mais importante, mas o mais importante nunca fica por fazer. Procuro respostas para perguntas que nunca fiz e que vou ter de calar. Para não os ver sofrer, para não os ver chorar.
E hoje sei que, cada momento é uma chegada que nos coloca numa nova partida. Por isso esta dor de partir vai comigo sulcar as cidades desertas que encontrarei por paragens distantes que vou ter de percorrer: eu sei que me obrigam a partir mas o que eu quero mesmo é chegar, o que eu quero mesmo é voltar a acariciar os montes distantes, fechar os olhos e adormecer - devagar.

Então eu percebo que, à minha volta, me olhem com um certo desdém porque eles não sabem, nem querem saber que, em cada chegada, há sempre uma nova partida, em que me renovo e me transfiguro, porque eu sei que vou ter de partir para um dia chegar.

Albertina Vaz ©2014,Aveiro,Portugal

3 comentários:

  1. Quando as amarras às formas, às cores, aos sons... à vida feita e refeita são muito fortes, a partida é dor, é ausência. E foi com passagens de verdadeira prosa poética que nos pintaste a dor da partida forçada. E a dor ficou mais dor...

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  2. Tema que não há maneira de deixar de atormentar aqueles que "perdem o direito" de subsistir no seu país. Ontem, porque analfabetos famintos por uma sopa que não tinham, se endividavam ousando galgar oceanos para alcançarem "terras" onde numa luta desigual eram obrigados a vencer. Mais tarde, desafiando fronteiras, a pé, de carro, de comboio, um "passador", amigo do dinheiro, empurrava-os para uma aventura em que partiam do nada à procura de trabalho, do mais duro e sujo, que outros já rejeitavam. Hoje, licenciados ou não, com um computador na bagagem pesquisam destinos, trabalhos, condições de vida, tudo porque no seu país já não há espaço para eles. Nele dominam vampiros: "são os mordomos do universo todo senhores à força mandadores sem lei..."
    As tuas palavras amenas, suaves e repletas de poesia são a denúncia necessária - de quem, muito bem o faz - dos tiranos que refastelados no poder expulsam os que os sustentam.

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  3. carretolages@gmail.com16 de outubro de 2014 às 22:38

    Começas por falar dele e depois transfigurares-te no teu ego sofrido em ter e não ter em ser e não ser, numa multiplicidade de situações em que te desejas realizar e não consegues por incompreensão ou ausência de reciprocidade. Vejo-te numa prisão metafórica de que queres sair e não consegues abrir as asas para partir. Um jogo que praticas com regras que te são impostas e que queres quebrar mas não o fazes A confusão entre o querer e não querer entre o sim e não,com a utilização de símbolos e imagens que as palavras descrevem com elegância e filosofia

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