domingo, 5 de março de 2017

De lágrima na mão

 © Albertina Vaz

Encontrei uma lágrima e toldei-me de espanto. Uma lágrima ali, perdida, no meio do nada e atulhada de tanto. Olhei-a a medo e tremi por dentro. Nem sei a que sabia – se era salgada, se era fria, se era amarga ou se devia prová-la e desfazê-la na boca, lenta e devagarinho.

Encontrei uma lágrima e quis afagá-la na minha mão mas, ao tocar-lhe, quase se desfez, em gotículas tão pequeninas que rolaram para o chão: eram gotas de dor, de amargura, de sofrimento, de tortura, de tormento. Eram só gotas mas sabiam a tanto.

E vi que havia mais lágrimas que se espalhavam pela calçada e inundavam o chão. Nem sei donde vinham nem para onde iam mas rolavam, sem destino, na calçada lamacenta que cheirava a calor e se alongava como quem rola, em círculos desfeitos, num mar de pranto.

Mas eram também gotas de receio, de inquietação, de medo, de susto, de alvoroço e de revolta, que se desenvolvem e se diluem, numa paragem de vida, onde tudo parece que começa e nada decide avançar.

E eram também sonhos de sonhos que deixam de ser sonhos e aparecem como realizações de realidades concretas que se corporizam num gesto, numa caricia, num afago, num mimo, num sorriso que se intensifica e se dilui quando, no horizonte, o sol nasce e as aves o circundam, em voo aglutinado, manchando de sombra a luz imensa que dele se evola.

E fiquei para ali a pensar nos milhões de lágrimas que volteiam como pássaros alados, rodopiando em voos de ida que voltam sempre ao local de partida e forçam o ramo da árvore, onde um ninho recorda o último verão e as canções de embalar sempre anunciadas.

Subi a ladeira, devagarinho, dobrada sob aquele peso daquela lágrima que recolhera na minha mão. E encontrei, sentada na beira da estrada, uma rapariga, de olhar vazio, enfrentando o nada. Em silêncio. Na sua face, apenas o silêncio, mudo e petrificado, de quem nada tem ou nada já quer ter.


Tinha passado por ali tantas vezes. Até já tinha visto aquela mulher, até já tinha visto outras mulheres, de olhar vazio, perdidas no fluxo das lágrimas. Mas aquela mulher estava ali, estática, de olhar fixo, imóvel, recostada para trás, sem um gesto, sem um pedido, sem um grito – nem mesmo um sussurro. Parecia ter perdido a voz, ou a vida, porque a vontade já se tinha soltado dentro de si.

Fiquei por ali, presa àquela imagem, sem me querer intrometer e sem me conseguir afastar. E lamentei esta minha indecisão, esta forma difícil que sempre me assalta quando me deparo com a dor dum outro e receio invadir o espaço que é dele mas já lhe não pertence. Aquela mulher (mãe, menina) já nem nada tinha à sua volta.

Quis falar-lhe daquelas coisas banais que articulamos, em dias penosos, quando nada mais temos ou nada mais somos. Mas nem essas achei adequadas. Desumanizada, era como ela se encontrava – qual estátua esquecida por quem passamos todos os dias sem sequer darmos conta da sua existência.

Passou por ali uma borboleta a voar para um sonho por sonhar. Ela nem pestanejou – continuava a deixar o silêncio falar. E como doía aquele silêncio. Mais do que o silêncio magoava aquela atitude estática que afastava quem por perto passasse ou quem nas cercanias ousasse circular.

Aprontei o melhor dos meus sorrisos – quem sabe um sorriso não invade aquele sítio interior que se havia fechado a tudo o que à volta teimava em continuar! Mas nada, nada conseguia pô-la a funcionar – muda, queda, de olhos vítreos prestes a desabar em cascatas de gotas como as que eu guardava na palma da minha mão.

Tentei procurar as palavras certas, pegar nelas e encontrar os silêncios que escrevo quando falo ou os gritos que escondo na chuva das mágoas e descobri o desassossego de não encontrar o gesto adequado ou o sentimento certo.

Nem sequer havia horizonte naquela calçada que subi sem destino. Degrau a degrau transpus a luz que quis achar no fim da estrada. Mas por mais que subisse continuava sem ver nada – apenas a mulher, encostada à parede envelhecida, no meio da calçada. Apenas ela tomou conta de mim e invadiu todos os meus sentimentos.

Voltei atrás e caminhei na sua direcção – lá estava ela, mantendo os olhos fixos, como desde o início a encontrara. Devagarinho, aproximei-me e murmurei: encontrei uma lágrima, está aqui, na minha mão – não a queres experimentar?


Voltou-se, como se esperasse aquele momento desde sempre, e sorriu pela primeira vez. Ouvia-a balbuciar que era bom, que a tinha perdido e que os seus olhos haviam secado de tanto esperar. E num momento aquela cascata, afundada num poço seco, brotou à superfície e inundou de calor o espaço em volta. Não sei se era mesmo uma lágrima mas o que sei é que aquela mulher acariciou a face e não parava de sussurrar – tive tantas saudades, já não sabia chorar!


Albertina Vaz ©2017,Aveiro,Portugal

12 comentários:

  1. Maravilhoso, Albertina.
    Há momentos em que é tão bom ler textos tão belos.
    Também há magia na tristeza, e sublimação na sua abordagem.
    Encontrei uma lágrima...no fim deste texto. Não me pertence, mas acariciei-a. Obrigado, Albertina.

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  2. lindo amiga, correm muitas, ao longo da vida, que bom que era se houvesse alguém que nos limpasse o rosto...adorei Albertina, bjs

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  3. Eu não quero dizer que é belo, que é lindo, que é maravilhoso, que adorei... eu não sei que te dizer... gostaria de ter um pouco do teu talento para te expressar esta delícia que me invade, esta emoção de te entender, esta lágrima que dá rosto a tanta sensibilidade!

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  4. Mais um texto maravilhoso entre tantos e tantos a que já nos habituaste. E... tanta e tanta ternura... mas também tanta e tanta nostalgia...
    Obrigada Albertina.

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  5. Uma lágrima cheia de mágoa, mas também de poesia. Gostei muito, Albertina!

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  6. Remeteste-me à poesia do Gedeão ou como apenas uma lágrima pode gerar tanta beleza! Obgdª pela partilha, agora e sempre.

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  7. Confesso que não tinha o habito de "ir"ao Evoluir , a partir de agora não vou perder um . Obrigada Albertina por escreveres tão bem ,sinto-me invadida por um misto de nostalgia e enorme admiração pela sensibilidade que mostras na tua escrita perfeita. Abraço e parabéns .

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  8. De Júlia Sardo recebemos o seguinte comentário:
    "Gostei muito de ler este texto. Fez-me reviver tanta coisa. Também eu fiquei sem lágrimas."

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  9. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Um texto maravilhoso de uma sensibilidade extrema, remetendo-nos para um silêncio onde o sofrimento é uma constante. Parabéns Tininha e continua a deliciar-nos com a tua forma de escrever inigualável."

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  10. De Maria Augusta Oliveira recebemos o seguinte comentário:
    "Um texto encantador."

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  11. De Ascensão Anastácio recebemos o seguinte comentário:
    "Lindo texto Albertina parabéns e contínua. Maravilhoso.

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  12. De José Teixeira recebemos o seguinte comentário:
    "Uma lágrima é muitas vezes um grito no silêncio que caminha dentro de nós. Apanhar uma lágrima com uma mão e tentar limpar lágrimas com o coração. Belo texto."

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