© Albertina Vaz
Encontrei uma lágrima e
toldei-me de espanto. Uma lágrima ali, perdida, no meio do nada e atulhada de
tanto. Olhei-a a medo e tremi por dentro. Nem sei a que sabia – se era salgada,
se era fria, se era amarga ou se devia prová-la e desfazê-la na boca, lenta e
devagarinho.
Encontrei uma lágrima e quis
afagá-la na minha mão mas, ao tocar-lhe, quase se desfez, em gotículas tão
pequeninas que rolaram para o chão: eram gotas de dor, de amargura, de
sofrimento, de tortura, de tormento. Eram só gotas mas sabiam a tanto.

Mas eram também gotas de receio,
de inquietação, de medo, de susto, de alvoroço e de revolta, que se desenvolvem
e se diluem, numa paragem de vida, onde tudo parece que começa e nada decide
avançar.
E eram também sonhos de
sonhos que deixam de ser sonhos e aparecem como realizações de realidades
concretas que se corporizam num gesto, numa caricia, num afago, num mimo, num
sorriso que se intensifica e se dilui quando, no horizonte, o sol nasce e as
aves o circundam, em voo aglutinado, manchando de sombra a luz imensa que dele
se evola.
E fiquei para ali a pensar
nos milhões de lágrimas que volteiam como pássaros alados, rodopiando em voos
de ida que voltam sempre ao local de partida e forçam o ramo da árvore, onde um
ninho recorda o último verão e as canções de embalar sempre anunciadas.
Subi a ladeira, devagarinho,
dobrada sob aquele peso daquela lágrima que recolhera na minha mão. E
encontrei, sentada na beira da estrada, uma rapariga, de olhar vazio,
enfrentando o nada. Em silêncio. Na sua face, apenas o silêncio, mudo e
petrificado, de quem nada tem ou nada já quer ter.

Fiquei por ali, presa àquela
imagem, sem me querer intrometer e sem me conseguir afastar. E lamentei esta
minha indecisão, esta forma difícil que sempre me assalta quando me deparo com
a dor dum outro e receio invadir o espaço que é dele mas já lhe não pertence.
Aquela mulher (mãe, menina) já nem nada tinha à sua volta.
Quis falar-lhe daquelas
coisas banais que articulamos, em dias penosos, quando nada mais temos ou nada
mais somos. Mas nem essas achei adequadas. Desumanizada, era como ela se
encontrava – qual estátua esquecida por quem passamos todos os dias sem sequer
darmos conta da sua existência.
Passou por ali uma borboleta
a voar para um sonho por sonhar. Ela nem pestanejou – continuava a deixar o
silêncio falar. E como doía aquele silêncio. Mais do que o silêncio magoava aquela
atitude estática que afastava quem por perto passasse ou quem nas cercanias
ousasse circular.
Aprontei o melhor dos meus
sorrisos – quem sabe um sorriso não invade aquele sítio interior que se havia
fechado a tudo o que à volta teimava em continuar! Mas nada, nada conseguia
pô-la a funcionar – muda, queda, de olhos vítreos prestes a desabar em cascatas
de gotas como as que eu guardava na palma da minha mão.

Nem sequer havia horizonte
naquela calçada que subi sem destino. Degrau a degrau transpus a luz que quis
achar no fim da estrada. Mas por mais que subisse continuava sem ver nada –
apenas a mulher, encostada à parede envelhecida, no meio da calçada. Apenas ela
tomou conta de mim e invadiu todos os meus sentimentos.
Voltei atrás e caminhei na
sua direcção – lá estava ela, mantendo os olhos fixos, como desde o início a
encontrara. Devagarinho, aproximei-me e murmurei: encontrei uma lágrima, está
aqui, na minha mão – não a queres experimentar?
Voltou-se, como se esperasse
aquele momento desde sempre, e sorriu pela primeira vez. Ouvia-a balbuciar que
era bom, que a tinha perdido e que os seus olhos haviam secado de tanto esperar.
E num momento aquela cascata, afundada num poço seco, brotou à superfície e
inundou de calor o espaço em volta. Não sei se era mesmo uma lágrima mas o que
sei é que aquela mulher acariciou a face e não parava de sussurrar – tive
tantas saudades, já não sabia chorar!
Albertina Vaz ©2017,Aveiro,Portugal
Maravilhoso, Albertina.
ResponderEliminarHá momentos em que é tão bom ler textos tão belos.
Também há magia na tristeza, e sublimação na sua abordagem.
Encontrei uma lágrima...no fim deste texto. Não me pertence, mas acariciei-a. Obrigado, Albertina.
lindo amiga, correm muitas, ao longo da vida, que bom que era se houvesse alguém que nos limpasse o rosto...adorei Albertina, bjs
ResponderEliminarEu não quero dizer que é belo, que é lindo, que é maravilhoso, que adorei... eu não sei que te dizer... gostaria de ter um pouco do teu talento para te expressar esta delícia que me invade, esta emoção de te entender, esta lágrima que dá rosto a tanta sensibilidade!
ResponderEliminarMais um texto maravilhoso entre tantos e tantos a que já nos habituaste. E... tanta e tanta ternura... mas também tanta e tanta nostalgia...
ResponderEliminarObrigada Albertina.
Uma lágrima cheia de mágoa, mas também de poesia. Gostei muito, Albertina!
ResponderEliminarRemeteste-me à poesia do Gedeão ou como apenas uma lágrima pode gerar tanta beleza! Obgdª pela partilha, agora e sempre.
ResponderEliminarConfesso que não tinha o habito de "ir"ao Evoluir , a partir de agora não vou perder um . Obrigada Albertina por escreveres tão bem ,sinto-me invadida por um misto de nostalgia e enorme admiração pela sensibilidade que mostras na tua escrita perfeita. Abraço e parabéns .
ResponderEliminarDe Júlia Sardo recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Gostei muito de ler este texto. Fez-me reviver tanta coisa. Também eu fiquei sem lágrimas."
De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Um texto maravilhoso de uma sensibilidade extrema, remetendo-nos para um silêncio onde o sofrimento é uma constante. Parabéns Tininha e continua a deliciar-nos com a tua forma de escrever inigualável."
De Maria Augusta Oliveira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Um texto encantador."
De Ascensão Anastácio recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Lindo texto Albertina parabéns e contínua. Maravilhoso.
De José Teixeira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Uma lágrima é muitas vezes um grito no silêncio que caminha dentro de nós. Apanhar uma lágrima com uma mão e tentar limpar lágrimas com o coração. Belo texto."