© Vitor Sousa
Opaco, persistente, frágil,
compulsivo no descrédito dos valores mundanos, o João soava a Alabastro.
Nascido para carregar
penitências, era a personificação das noites revoltas, da febre, das maleitas e
de um vómito cáustico oriundo de um qualquer manifesto de repúdio aos deuses ou
às contrariedades de bom comportamento.
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Opaco,persistente, frágil, o João soava a Alabastro |
O seu universo tinha de ser
retocado, amarfanhado e reinventado por ele, como se ele fosse o princípio e o
fim de todas as coisas na plenitude desordenada do instinto.
A perspectiva da observância era
antagónica na captação pictórica do mundo, sempre pautada pelo confronto às
verdades absolutas e à força absurda das razões que enjaulam os caminhos.
Era um artesão da alma.
A vista da imensidão, ou a mão
pousada no sossego da muralha castelã imprimiam um derrube do temporal, onde
todo o rasto histórico é agora. A relação com o outro era fácil, espontânea,
afável e curta.
A vivência humana na sua
complexidade, imprimia-lhe sempre uma impressão de transacção comercial
submersa movida por vómicas cumplicidades sarapintadas a custo por retalhos
necrófagos de aparência isenta e sadia.
Até a caridade, supostamente
nobre e altruísta era castrada pela contrapartida do amanhã desconhecido, pelo
dilema medonho de fazer o bem para garantir o bem-estar sem vir a precisar do
pão alheio ou de estender a mão à vergonha do pedir.
Valiam-lhe os bichos, para lhe
nortear as contendas e harmonizar a existência.
No velho quintal rectangular, a
capoeira brindava-o no esplendor da solidão com o deleite de conversas
infindas, arquitectando estórias brindadas de certezas de irreal.
As galinhas arrumadas entre uma
rede fina e o muro grotesco de granito escuro bordado a “conchilros” verdes,
tinham um badalar sonoro de balbucio mimico, como um diálogo imaginário que lhe
tocava o âmago.
Algumas chamavam-no pelo nome e
outras tossiam afectuosamente num cacarejar quase mudo.
Pequenos segredos de vivências raras que
Alabastro nunca contou a ninguém.
Do outro lado do muro do quintal,
morava a “Senhorinha”, mulher pequena, cabeça enfeitada de um lenço preto só
pousado com as pontas revoltas sobre um cabelo preto com núpcias de grisalho.
Astuta, afoita, mulher de muitas
sortes, exímia no fumeiro e em noites de borralho relampada em frente ao lume
num escano de castanho escurecido do tempo.
De dia, era o talho. Um balcão
corrido encabeçado por um cepo de castanho marcado por milhares de cortes
infligidos a cutelo com a sapiência do horror do desmembre.
Por trás, a parede tinha uma
barra de ferro chumbada com uns ganchos retorcidos e sebosos onde jaziam os
cadáveres da beleza arquitectónica do paladar.
Quando rangia a porta do quintal,
lá pelo meio da tarde, esgueirado atrás do muro, Alabastro, na quietude da
curiosidade, espreitava por um buraco no muro feito a preceito, bem à altura do
olho, os rituais da Senhorinha. Olhava de soslaio, levantava a saia, punha a nu
a intimidade polvilhada de um manto negro magnético emoldurado por duas coxas
roliças, e mesmo ali em frente a um amontoado de couves-galegas, urinava de pé
num deleite suspirado, deixando entrever uma espuma amarelada de cheiro acre
mesclado de erva-doce.
Três ovelhas atadas a uma velha
oliveira aguardavam pacientes com balir submisso o massacre para o repasto dos
prazeres da mesa.
Augusto, o enteado, rapaz dos
seus catorze, tinha a tarefa de as levar ao matadouro por pequenas ruelas de
muros de granito tosco, esculpidos de magia e de engenho da sustentabilidade.
Por vezes o Alabastro ia com ele,
era penoso, os animais sentiam o destino e recusavam o caminho, só a golpe de
bastão e de arrasto o Augusto conseguia o seu fim.
O prémio da façanha era como uma
iniciação a um ritual estranho forjado pela aceitação incondicional do acto.
A negação era impensável, era
como um sacrifício tribal que consistia em comer os rabos das ovelhas assados
torrados de lã queimada numa pequena fogueira improvisada no quintal.
Sabor intenso, azedo, os dentes ficavam
pretos, comia-se com asco frenético movido de força estranha, talvez pela
crença solidária de embelezar o desterro do Augusto.
Alabastro também tinha as suas
pequenas felicidades na exaltação solitária do sonho. Tinha fantasmas vestidos
de cores fortes, ogres, ninfas, princesas mouras e uma ternura imensurável por
uma formiguinha passante, ou um rato sobrevivente às vassouradas da mãe. A
cozinha era gigante e sombria, lá no fundo crepitava quase sempre o lume sob as
panelas de ferro. À entrada havia um mosqueiro que albergava quase tudo, desde
o pote de banha de porco até ao luxo do fim do mês, um esplêndido cacho de
bananas para saborear lentamente com o olhar e comer com o método cadenciado,
quase religioso facultado pela mão do pai. O fogão, o último da saga aquisitiva
era branco, os puxadores cromados de um lustro irrepreensível cintilavam como
estrelas num antro escuro de penumbras múltiplas.
Nesse dia, o pai, contemplativo
da peça, mas carregado de nuvens de desconforto, vociferou alto e bom som para
audição geral, com o assombro que o momento impõe:
- Cuidado com a botija de gaz,
isto pode ir tudo pelos ares…
O Alabastro, no seu canto, com a
presença habitual de quem não está, fechou os olhos e deixou-se levar pelos
ares… Nessa noite o céu era azul, como se fosse verão, Alabastro empoleirou-se
no muro do quintal, agarrou com firmeza o poste que segurava a lâmpada que
luzia o canelho e voou sobre a imensidão do nordeste transmontano. Não muito
longe, depois da descida do ribeiro emoldurado de olmos esguios cheio de pios e
cantares, rumou ao sol. Os lameiros sucediam-se, circundados de muros e
arbustos farfalhudos povoados de ninhos, o Sr. Alfredo, mais abaixo, sulcava a
terra com brados e o afoite da sua junta de bois.
- Bom dia Sr. Alfredo, como
está? O homem, meio estonteado nem sabia de onde vinha o cumprimento até
levantar a cabeça, e ao vê-lo perguntou surpreso:
- Olá Alabastro, que fazes aí em
cima?
- Olhe, ando pelos ares, é tudo
mais bonito visto daqui, até vi uma raposa a beber água no ribeiro.
- Então e agora, para onde vais?
- Vou dar mais umas voltas por
aí, há muita passarada que não conheço…
- Pronto, vai lá, mas tem
cuidado, agarra-te bem ao poste com essas manicas de aranha. Vagueou toda a
noite até de madrugada, e sem largar o poste, voltou a pousar sem dificuldade o
quintal, já de luz apagada, mesmo ao lado da Senhorinha. Quando acordou já a
mãe desafiava os cavacos na lareira para mais um dia de guerra aberta com a
vida.
Vitor Sousa ©2017,Aveiro,Portugal
Duro, o Alabastro, mas dá gosto vê-lo, assim, pelas palavras do autor.
ResponderEliminarRocha branca, translúcida, semelhante ao mármore, porém menos resistente do que ele, e muito usada em trabalhos de escultura – assim é o Alabastro. Capaz de sonho, de voos inesperados e de regressos à dura realidade. Um texto que li com a urgência de chegar ao fim e que voltei a reler para degustar as palavras e saborear os meandros da vida. Gostei muito, Vitor.
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