©Albertina Vaz
Tinha saído a
horas mas uma turbulência inopinada obrigara o piloto a esperar nova
oportunidade de aterragem. E ali estávamos, em voo planado, a circundar a
cidade cujas luzes se começavam a divisar. Tremia de impaciência. Isto era tudo
o que não queria e aí estava a realidade: não havia qualquer hipótese – ia
chegar atrasada.
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Ía chegar atrasada |
Atravessei,
em passo de corrida, os corredores intermináveis do aeroporto e aguardei, outra
vez, numa impaciência sem medida, a bagagem que persistia em aparecer depois de
todas as outras. Quase me apetecia sair sem ela mas aquele sentimento de
pertença impediu-me de sair dali. Finalmente: lá estava ela.
Só dei por
mim quando me vi de novo numa fila interminável. Desta vez era o táxi e todas
as pessoas que, à minha frente, faziam questão de chegar, elas também, a horas.
Martelava-me na cabeça a certeza de que o avô estava sozinho em casa e lhe
tinha prometido que jantaria com ele. Chegas sempre tarde, não vale de nada
pedir-te para respeitares as minhas horas. Não tens sequer horas. Nem para mim,
nem para ti, nem para ninguém. Vida de viajante não dá felicidade a ninguém.
Esta corrida
em que a minha vida se transformara estava a doer-me cada vez mais. Deixei de
ter os meus silêncios, as minhas leituras, as palavras que gostava de escrever.
Até deixei para trás os olhares, os gostos, os sorrisos.
Estava a
chegar e uma chuva miudinha chegava comigo. Como se nada mais bastasse para me
desesperar. Até aquela chuva irritante vinha festejar o meu atraso. Meti a
chave na fechadura e entrei. A medo e em sofrimento.
Apressei-me
nas desculpas: o voo que atrasara, a bagagem que não chegava, muitas
pessoas e
poucos táxis e até a chuva. Um turbilhão de palavras. E de desculpas. Só então
reparei que o avô, imponentemente, estava sentado no topo da mesa, com um
sorriso no rosto, imperturbável. Nem me ouvira sequer. Olhava para um e outro
lado e ia distribuindo sorrisos e abraços. Amigos imaginários? Ou simplesmente
a doença a avançar?
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Alva, como a neve |
Olhei à sua
volta e percebi que a toalha de renda, bordada pela avó, se espalhava pela
mesa. Alva, como a neve. Linda como nenhuma. Tudo estava meticulosamente
pensado: o serviço de jantar dos dias de festa, o talher de prata, os copos de
cristal. No centro, um arranjo de flores vermelhas pendia de um arabesco, como
se de uma cascata se tratasse. Dois candelabros de velas acesas deixavam cair,
em gotículas pendentes, a cera que se acumulava num prato que as circundava. O
cheiro a cera queimada dava ao ambiente um certo ar de mistério que se tornava
envolvente.