domingo, 10 de abril de 2016

O Patrão

©Vitor Sousa

O Zé já nem lia os jornais, uma morbidez abafada consumia-o por dentro como um fogo pardo.
O olhar vivo deu lugar a um semblante cabisbaixo, as rugas afagavam-lhe a cara em jeito de carícia de morte.
O Zé já nem lia os jornais
A tenacidade, o desafio e o gozo de intempérie desvaneceram como tarde triste em fim de Outono.
Os bancos levaram-lhe tudo, nem uma casita a cair de madura nas encostas da Lousã, herança do seu avô, escapou à fome métrica dos vampiros.
Deixaram-lhe a mesa, duas cadeiras e a cama no apartamento alugado onde ele ainda chafurda memórias entre cartas, escritos e fotos, de um passado recente.
O Artur, amigo de sempre, entretido com o emaranhado da sua pequena mercearia, estranhou a ausência do Zé.
Meteu pernas à velha escada de madeira e, depois de uma ascensão rangida de três andares, bateu à porta.
O Zé saltou na cadeira num sobressalto pasmado.
Ficou inerte na incerteza da visita…
Quem será? Que lhe quereriam mais?
Uma voz afável e ofegante ouviu-se do outro lado.
- Anda lá Zé, vamos beber um cafezito, abre-me essa porta.
Tremulo a lívido, pouco refeito do susto lá abriu a porta e, em tom de desabafo, diz:
- Ainda bem que vieste, já estava aqui a magicar umas ideias pretas que nem te digo…
...abafar tempestades que lhe
secavam o alento
Lá foram na tagarelice de circunstância, abafar tempestades que lhe secavam o alento.
- Não podes ficar aí a remoer a vida, distrai-te homem!
Ouve lá…Queres que te arranje uma companheira?
Pergunta o Artur em tom de riso.
- Só tu me farias rir, num tempo destes…
A conversa desanuviava o desnorte enquanto beberricavam o café.
O Zé lá ia descarregando a mágoa em sulcos de desespero.
- Sabes Artur, foram quarenta anos de descontos, de trabalhos, de salários, de contas, de medos, de muitos nadas que se transformaram em coisa nenhuma.

- Calma Zé, a vida continua, tens os filhos, a família…
- Sabes…A família vê-me mais como um culpado que como uma vítima.
O Artur já nem sabia o que fazer, até estava na disposição de fechar a chafarrica e arrastá-lo para uma tarde de pescaria, mas não conseguiu, a ferida era fresca, deixou-o falar.
Maldita máquina!
- Lembras-te do Silva? Aquele miúdo das cozinhas, a quem o banco emprestou dinheiro para comprar as máquinas?
- O banco levou-lhe tudo menos as dívidas.
- Olha…Atirou-se à linha em Esmoriz.
- É enterrado no sábado e deixa uma menina de dois anos…
O Artur pensou baixinho que os bancos são a mais vil forma de poder. Podem roubar, podem falir, podem reduzir-nos a um estado vegetativo, podem sugar a dignidade com a ligeireza de quem bebe um copo de água, haverá sempre um governo caridoso pronto a salvá-los com o dinheiro de todos e continuarem impunes e intocáveis no seu trilho maquiavélico, mas nada disse.
O Zé lá ia desgarrando o seu fardo como facas afiadas da raiva, capazes de dilacerar a injustiça.
- E pensar que só me fiz patrão pela ilusão de ser o timoneiro do meu barco, quando afinal me fui enfiar na boca do ogre que tudo devora…Tudo leva.
- Maldita máquina …Que raio de contra-senso!
De repente parou, deu por si... Levantou-se num impulso irrequieto como se tivesse acordado de um transe, pôs a mão no ombro do amigo e disse:
- Pois é Artur, até já me custa falar nisto, obrigado por me ouvires, vou andando, gostei de estar contigo, fez-me bem…
O Zé já não estava bem em lado nenhum…
Deu-lhe um abraço sentido, vestiu alma nova, encheu o peito de uma aragem de esperança e vociferou como um prisioneiro no corredor da morte: “Hei-de sobreviver a isto”, e lá se esgueirou rua acima, repleta de um enorme vazio de gente.
Nunca mais foi visto, até o Artur lhe perdeu o rasto, há quem diga que o viram a dormir na
e da mão caiu, singela e sorrateira, uma urze
rua junto ao metro, embrulhado em cartões.
O tempo e a solidão não deixaram clarear raios de esperança, os dias perderam o sentido e as nuvens envolveram-lhe a alma.
A vida já não tinha rosto, o céu não era azul, até os pássaros deixaram de cantar.
O Zé desistiu.
Por ironia foi a enterrar no dia 25 de abril, haveria de rir se cá estivesse, com aquele sentido critico e a boa disposição dos tempos idos.
Uma chuva miudinha polvilhava os raros presentes, parecia de circunstância, como uma medalha pregada na pele da existência.
O Artur, debaixo do grande guarda-chuva preto, que mais parecia um manto de pesar, roía um sombrio desalento.
O olhar deixou escapulir uma lagrima revolta, e da mão, caiu singela e sorrateira, uma urze sobre o verniz da tampa do caixão.

Vitor Sousa ©2016,Aveiro,Portugal

8 comentários:

  1. De Orquidea Miranda recebemos o seguinte comentário:
    " Foi para isto que se fez a revolução dos cravos"

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  2. De Ró Vale recebemos o seguinte comentário:
    "É uma tristeza,mas é a dura realidade que muita gente vive..."

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  3. Hesitei comentar este texto.Escrito criativo na profusão de imagens e tão mórbido de conteúdo ( que até poderia ser real) mas que não ousaria abordar pela litania de situações que conduzem ao desespero até ao ponto de rejeitar a vida.Não escreveria por aí...

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  4. É comum rejeitar a realidade quando nos incomoda, é como pintar de rosa uma parede negra...

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  5. De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
    "Um texto que nos toca a alma. Casos como este acontecem por esse mundo fora. Forte é aquele que se levanta após a queda. Por vezes a dor é tão forte que a queda é iminente. Parabéns Vitor. Continua."

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  6. De Ana Borges recebemos o seguinte comentário:
    "Por acaso já tinha lido... esperemos que os "Zés" e os "Artures" tenham sempre uma mão amiga para os ajudar a seguir em frente. Que se perca tudo, mas não a dignidade e a verdadeira amizade"

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  7. Mal li este texto apeteceu-me comentá-lo de imediato. Não o fiz e preferi meditar na forma como o deveria fazer. Hoje como antes, entendo tratar-se de uma história de vida, já que a morte é só a última cena. Quando se utiliza o realismo como ferramenta corre-se o risco de não agradar a todos. Como ninguém tem o direito de decidir sobre a vida de outrem também nos devemos remeter ao silêncio respeitador de quem decide pôr fim à SUA vida. Apreciei particularmente a delicadeza com que o assunto foi tratado tolerando o "desistiu".

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  8. Encarar a realidade tal como ela se nos apresenta é olhar de frente o que nos incomoda e não podemos alterar. Gostei muito deste trabalho pela forma como está escrito, repleto de uma sensibilidade muito acutilante. E, embora esta não deva ser a resposta às adversidades gritantes dos tempos em que vivemos, é com um profundo respeito que vou tomando conhecimento dos muitos casos em que a vida deixa de ser o mais importante da existência do ser humano. Quando se chega a este ponto as saídas já nos foram todas vedadas. Parabéns Vitor. Vou gostar de o ler mais vezes.

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