Lena Marília Faria Castanhas
O Natal, na sua essência,
faz parte de mim desde que me conheço. A tradição veio do meu pai que a recebeu
dos seus antepassados de Amarante. Era indispensável fazer o Presépio, com as
figuras guardadas no ano anterior e todas as outras que se iam adquirindo.
Ficava dignamente instalado na sala e todos colaborávamos na sua montagem, com
entusiasmo, alegria e muita imaginação. Com papel grosso e acastanhado,
previamente amarrotado e carregado de musgo, representava-se a paisagem natural
com rios e lagos (a água era simulada por um espelho) e colinas. Em local privilegiado,
ficava a gruta que alojava o Menino, seus pais, o burro e a vaca e as restantes
figuras eram espalhadas pelo espaço sobrante de acordo com a lógica de cada um
de nós.
Ao lado, fazia-se a árvore
de Natal com um pinheirinho, encimado por uma estrela prateada e enfeitado com
fitas e bolas de cores variadas e pequenas velas vermelhas que só os pais
podiam acender.
O momento principal do Natal
era a ceia, a Consoada. À mesa, posta com requinte, sentava-se a família,
vestida para aquela ocasião especial, e algum Amigo que não pudesse, naquela
noite, estar com os seus. Nesse dia era permitido conversar, rir, contar
histórias e quebrar mais algumas regras de “bem estar à mesa”.
A ementa era sempre a
tradicional: sopa de lagareiro, bacalhau cozido com batatas, grelos e ovos, um
prato confeccionado com couve troncha e bacalhau, ao qual o meu pai chamava “couvanças”
(receita de família) arroz de bacalhau com bolos de bacalhau e arroz de polvo.
Não se comia carne e a sobremesa era muito variada: rabanadas. Sonhos,
coscorões de forma, torta de laranja, torta de noz, leite creme e pudim.
Na mesa de apoio havia pão
de ló com queijo da serra amanteigado, passas, nozes, figos secos e pinhões, bombons
e outras guloseimas.
Um pouco antes da meia
noite, cada um de nós colocava um dos seus sapatos junto da lareira e ia para a
cama porque, quando estivesse a dormir, o Menino Jesus descia pela chaminé e
deixava lá um presente.
No dia seguinte, corríamos
para a lareira, abríamos os embrulhos e exultávamos de alegria pelo que
encontrávamos. Tínhamos desejos e, às vezes, até escrevíamos cartas ao Menino
Jesus mas sabíamos que, nem sempre, Ele as recebia ou conseguia satisfazer os
nossos pedidos. Mas, o mais importante era mesmo saber que não se tinha
esquecido de nós e qualquer presente era bem-vindo.
Muitos anos passaram, meu
pai partiu mas, em sua memória, o Natal continuou a ser celebrado, em nossa
casa, como ele tanto gostava. Foi este o Natal que quis transmitir aos meus
filhos. Durante anos isso aconteceu na nossa casa, em Aveiro, e todos nós
guardámos saudosas recordações dos momentos então vividos. Depois, muitos
outros factores intervieram, apareceu o Pai Natal, a sociedade de consumo
impôs-se, o conceito de família alterou-se, novas famílias surgiram com as suas
culturas próprias, o Menino Jesus foi perdendo protagonismo e eu fiquei só.
Hoje, novos valores se têm
imposto anulando os anteriores. Da afectividade passou-se para um pragmatismo,
por vezes cruel: quem, ou o que, não nos é útil, descarta-se ou elimina-se
facilmente porque não cabe nas nossas casas e, bem pior do que isso, nas nossas
vidas.
O tempo do SER tornou-se
anacrónico e vivemos hoje o tempo do TER!
A vida transformou-se numa
corrida louca onde não há lugar para o outro que foi ficando para trás, muitas
vezes para que a corrida desenfreada possa continuar.E assim se foi perdendo o
espírito de Natal. O Menino Jesus já só existe no coração de muito poucos de
nós que pensamos partilhar a mesma cultura.
Em meu entender, e com algum
desconforto, como não há Natal sem Menino Jesus, creio ter chegado o momento de
abolir esta efeméride. Talvez faça mais sentido, por exemplo, voltar a festejar
o solstício de Inverno, uma vez que é um fenómeno universal que não depende de
valores, podendo até incluir a troca de presentes e o jantar ou almoço
comemorativo.
Mudam-se os tempos, mudam-se
as vontades – lá dizia o Poeta!
“Hossana nas alturas e paz
na terra homens de boa vontade”!
Lena Marília Faria Castanhas ©2016,Aveiro,Portugal
Mas que maravilha... mais uma pessoa a engrossar a nossa já vasta coluna de contadores de estórias. E então que bem que o faz. Enquanto lia podia ver um filme a preto e branco cujo guião era o mesmo com umas ligeiras alterações. Gostei muito e votos de uma boa estadia por cá, Lena Castanhas.
ResponderEliminarMais um novo autor no Evoluir. Desta vez e, no rescaldo do Natal, recebemos uma memória que é também uma critica muito profunda a tantos Natais, sem história e sem vida. É de braços abertos que acolhemos as palavras de Lena Marília Faria Castanhas.
ResponderEliminarDe Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminar"Uma linda história onde me revejo com muita saudade. Parabéns."
"O tempo do SER tornou-se anacrónico e vivemos hoje o tempo do TER!" Na verdade, "a sociedade de consumo impôs-se" e daí tiraremos as devidas conclusões. O Natal sempre foi e é a festa da família, seja ela qual for, com Pai Natal ou com Menino Jesus ou com ambos.O mais importante é não nos preocuparmos com as luzes das janelas para vizinhos verem e antes cuidarmos do aquecimento humano e fraterno dentro da casa de cada um. Sinto-me privilegiado por ter esta ótima prenda de Natal que foi surpresa muito agradável:desembrulhei e GOSTEI.Obrigado.
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