quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Cumplicidades

Albertina Vaz 


Uma poça de água no chão espelha as pontas esguias das árvores onde as folhas começam a rebentar. Há flores por toda a planície e sabe bem pressentir o renascimento que se aproxima. Quem dera que o sol apareça! Faz-nos falta sorrir ou fazer sorrir uma criança…
Vamos chapinhar num
charco de água
Anda, vem comigo, anda daí: vamos chapinhar num charco de água e rir quando nos molharmos e os pingos da lama nos sujarem o vestido que já não vestíamos desde o ano passado. Está frio, eu sei! Mas vamos lá, saborear a água, como quando eu era menina e saía de casa a correr – porque eu podia correr na rua, sabes – e vamos sujar os sapatos e pegar na lama e pintar a cara e fazer asneiras… Só hoje que a mãe não vê!
Anda, vem daí: vamos correr pela praia e atirar areia ao ar e sentir o cheiro a maresia e os pingos das ondas que rodopiam no mar. Vamos senti-las e lamber os braços que sabem a sal e correr, correr – espera por mim, que me dói… eu vou já! Espera aí! Que bom sentir a tua mão na minha e a outra a limpar-me o sal da água e os salpicos das ondas.
Vamos construir um castelo de areia
Vamos construir um castelo de areia: vamos fazer um grande monte e depois dar forma às ameias e fazer um fosso a toda a volta – eu sei, eu sei – uma ponte para a princesa sair ou para o príncipe entrar. Sim, vamos pôr uma bandeira lá na torre mais alta: isso, traz esse pauzito da duna e vamos fazer um desenho neste lenço. Que lindo: esvoaça com o vento. Vamos apanhar conchinhas e fazer uma muralha de rendas à volta das janelas. Olha a bandeira, parece uma nuvem branquinha a descer, a descer e a desfalecer-se lá longe no horizonte, perto do mar…
Deitarmo-nos na areia húmida? Mas depois ficamos todas ensopadas… Vamos lá, tens razão: vamos fazer tudo o que é proibido, hoje! Que lindo o céu – está cheio de nuvens! A correrem dum lado para o outro: aquela parece que sopra nas outras todas. O quê? Achas que sim? Estarão mesmo a brincar às escondidas? És capaz de ter razão…Aquela é um urso? Será? Dizes que vai a correr atrás da menina? Mas eu não vejo menina nenhuma… pois é, já não vejo muito bem! Gosto que vejas por mim: ensinas-me o que eu já não consigo ver.
E se nos fossemos rebolar pelas
dunas de areia?
E se nos fossemos rebolar pelas dunas de areia, aquelas ali que não têm picos? Que me dizes? Mas depois ficamos todas sujas, estamos molhadas e … deve ser bom, deve! Vamos lá! Espera, olha o que aqui encontrei… Sabes o que isto é? Um ninho com ovinhos tão pequeninos. Não lhes mexas: a mãe deles pode não gostar! Qualquer dia voltamos cá para ver os passarinhos a abrir os biquinhos e a pedir de comer. São tão lindos: nunca viste um ninho de passarinhos? Está combinado, noutro dia temos de vir cá à procura deles. Vamos lá ver se eles se deixam mostrar.
Vamos molhar os pés? Com meias e tudo? Vamos lá, anda daí! Vamos procurar nas rochas das escarpas aqueles peixinhos pequenos que se escondem quando aparecemos e até talvez, se metermos bem a mão por baixo… espera aí – é um polvo! Está a agarrar-me os dedos o malandro. E tu ris-te? Deixa-o ir pela maré acima em direcção ao mar. Dantes, sabes, era fácil encontrar mexilhões, berbigões e outros bichinhos de casca. Às vezes vinha cá com a tua mãe e apanhávamos uma quantidade deles para abrirmos ao lume e comermos quentinhos ainda a saber á agua do mar.
Estás com fome? Fome de quê? Um leitinho? Ou um pão com manteiga?

Se eu quero comer um gelado? Eu querer, queria mas achas que não nos faz mal? É que

Se eu quero comer um gelado?
ainda está muito frio e podemos ficar doentes. Esquece, vamos lá comer um gelado e até podemos andar naquele cavalinho que sobe e desce e desce e sobe como se nunca quisesse parar. Depois fazemos uma história de cavalos a correr no deserto e de pessoas felizes a saltar com eles e de ursinhos e patos… os patos não andam atrás dos ursos? Isso é o que tu pensas…Eu já vi um pato a debicar no pé de um urso. Não era um Panda não, era um urso vulgar: olha, podes crer! Enganei-te: foi no circo!
Claro que não podemos brincar assim todos os dias mas depois tomamos um banho, vestimos uma roupa florida, aquecemo-nos na lareira e tomamos um chocolate quentinho. As duas, sim! E quando nos perguntarem porque estamos a rir rimos ainda mais e não contamos nada a ninguém. É um segredo – dizemos. Nosso, só nosso e eles vão ficar roídos de inveja de nós porque já não sabem o que é rir. Depois vão dizer-me que sou pior do que tu, que faço asneiras, que te levo a fazer asneiras e nós, e nós – vamos rir ainda mais!
Em seguida fazemos um prato grande de pipocas, sentamo-nos muito quietinhas, eu vou buscar aquela manta quentinha para aquecermos os pés, e vamos ler aquela história que já não vimos há muito tempo. Sim, pode ser essa! A que tu quiseres: o mais importante é que vamos ler juntas!
Fomos apenas ver o mar!
E eles vão dizer: já andaram a fazer asneira! E nós, com o ar mais pacífico deste mundo, vamos responder: nem pensar! Fomos apenas ver o mar!
É que eles não sabem que nós sabemos que há coisas boas que não se podem fazer mas que, em dias especiais, fazem despertar em nós aquela cumplicidade que só existe quando se cultiva e só floresce quando se alimenta.


Albertina Vaz ©2013,Aveiro,Portugal

6 comentários:

  1. Duas leituras. Uma, a da louca avó que adora recriar a ingenuidade, única e bela de uma criança. A outra, o gosto, o gozo, o amor que tu tens pelo ato de escrever, e eu de te ler. Só me resta acrescentar que não podiam ser mais bonitas as boas vindas de uma avó que nasceu no Dia do Escritor à nossa Bruna que chegou no Dia do Poeta.

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    Respostas
    1. É uma delicia ler as tuas criticas ao modo e jeito da Albertina escrever...
      Hoje aprendi mais duas coisas: os Dias do Escritor e do Poeta.
      Estão de parabéns. A Albertina por mais esta linda história tão real nas nossas memórias e tu pela ternura com que falas da tua mulher. Obrigada a ambos.

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  2. Um texto lavado com palavras de criança que em monólogo se espraia na diversão que espicaça a companhia a imitá-la nos actos e nos lugares.
    Parabéns!

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  3. Muito obrigada pelas suas palavras. É sempre bom saber que somos lidos mas sabe ainda melhor que comentem o que escrevemos. É um sinal de que, para além de sermos lidos, as nossas palavras tocaram o leitor e chegaram ao lado de lá. Os seus comentários serão sempre bem vindos e nós continuaremos por aqui tentando continuar a EVOLUIR!

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  4. Já cá tinha estado, há cerca de três anos! Reli. (Re)gostei. Parabéns, Albertina!

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