Albertina Vaz
Por aqui! Por aqui. Vire
tudo à direita. Um bocadinho mais. Agora para trás, para trás. Mais um
bocadinho. Tudo para a frente. Já está. Perfeito! Uma moedinha, por favor.
Aspeto descuidado mas ágil
no andar, ele ali está, diariamente, como se dirigir o trânsito
e, mais
concretamente, arranjar um lugar para arrumar um carro, fosse o trabalho mais
importante do mundo. E afinal era. Para ele, claro. Era a forma de arranjar uns
trocos. E uns trocos representavam uma sandes, uma sopa, um copo. Noutros
tempos não lhe chegavam uns trocos. Precisava de muito mais do que trocos para
vencer o vício. Mas deixara-se disso. A muito custo, mas deixara. Foram tempos difíceis
esses em que tivera de lutar contra um desejo desmedido que nada saciava e tudo
exigia. Valeram-lhe, nesse época, aqueles senhores de todas as noites que apareciam
com sopa quentinha, um pão e às vezes qualquer coisita mais.
O meu menino é d'oiro... |
“O meu menino é d’oiro/ é
d’oiro fino/ Não façam caso/ Que é pequenino.” – cantava lá longe uma voz que
não queria ouvir.
Por que começara a
drogar-se? Isso era uma longa história com raízes tão longínquas que não sabia
se conseguia recordar com clareza. Um dia experimentara, para não se
envergonhar perante os amigos. No dia seguinte, quis voltar a viver as
sensações do dia anterior. Era só para saber como era aquilo. Não queria ficar
dependente. Tinha uma personalidade forte e não era qualquer um ou qualquer
coisa que lhe ia destruir a vida. Já nessa época sabia que a dependência era a
maior de todas as doenças.
Depois, sem saber como, foi
experienciando tudo. E, para poder comprar, foi levando de casa dos pais tudo o
que pudesse trocar por aquele pó branco que o arrastava vertiginosamente. Foi
há muitos anos: o pai ameaçou tirar-lhe as chaves de casa. Não quis saber e foi
então que começou a viver na rua. De expedientes, de pequenos furtos, de
assaltos ligeiros. Foi preso. Só são presos os pobres – afirmava. No fundo
sabia que não podia continuar a destruir-se e a destruir os que à sua volta
circulavam.
“O meu menino é
d'oiro/D'oiro fagueiro/Hei-de levá-lo no meu veleiro” – era a voz da canção a
persegui-lo na noite escura.
Pouco tempo depois estava
apto para recomeçar tudo de novo. Não aceitou voltar a casa dos pais. Também
tinha o seu orgulho. E sabia que iam impor-lhe regras e estabelecer
compromissos. Não, não estava disposto a aceitar o que eles queriam. Já não era
uma criança. Sabia muito bem desenvencilhar-se sozinho. Quis arranjar um
emprego mas nada estava fácil. Naquela noite dormiu na rua junto a outros
corpos espalhados pelo chão. E sentiu-se acompanhado. O sabor a fome
aqueceu-lhe a boca e inundou-lhe o corpo. O frio entranhava-se na pele e
cortava-lhe os dedos.
No dia seguinte, também a
vaguear por ali, um rafeiro encostou-se às suas pernas e
nunca mais o largou.
Companheiro da noite partilhou com ele os restos da refeição que todos
dividiam. Mas até na pobreza aprendeu que cada um tem o seu território que não
pode ser invadido por mais ninguém. Naquela noite, uma desordem em que se viu envolvido
sem o pretender afastou-o de tudo e de todos e deixou-o a vaguear, sem sentido,
pelas ruas sem dono e pelas vielas estreitas que nunca mais acabavam.
Um rafeiro nunca mais o largou |
Ao longe, uma voz melodiosa,
vinda do nada, como que ondulando por entre searas de vento, sussurrava-lhe
baixinho:
“Venham aves do céu/Pousar
de mansinho/Por sobre os ombros/ Do meu menino.” – e pela primeira vez chorou
copiosamente como se amanhã não houvesse mais.
Foi então que encontrou o
amor e percebeu que não estava só. Maria tinha uns olhos feitos de água salgada
e um sorriso que esgotava o brilho da lua cheia. Navegava por sobre as ondas e
esvoaçava como uma garça ligeira ao sabor do vento. As suas gargalhadas
saciavam a fome e tocavam notas duma música que se soltava no ar. Maria queria
ver as estrelas do céu por sobre o mar e enrolar-se na areia molhada da praia
deserta. Maria queria ser menina e era mulher.
Nessa noite quis ter uma
vida nova. E jurou. E prometeu. E voltou a gritar – agora tudo vai ser
diferente. Agora acabaram-se os sonhos e as manhãs sem nada e as noites sem
sono e as estrelas-do-mar. Amanhã vou procurar um trabalho!
E foi. Correu praças,
atravessou pontes, transpôs muros e cruzou bairros. Nuns locais não estava
seguro, noutros, seguro demais. A terra que o vira nascer não queria dar-lhe
guarida nem vê-lo crescer.
E à noite, quando, em desalento,
regressava ao cais onde encontrara o seu amor, continuava a ouvir a voz que
entoava a sua canção de embalar:
“Venham comigo venham/Que eu
não vou só/Levo o menino no meu trenó.”
"Que eu não vou só..." |
Uns dias depois, Maria
partiu como tinha chegado – fechou os olhos e levou consigo a esperança do
menino homem que não chegara a ser. Um outro vício tomou conta dele. Voltou a
cambalear pelas ruas sem vida e pelas vielas sem som. De nada serviam as lambidelas
do companheiro de viagem que nunca mais o deixara. De nada serviam as canções
de roda e as gaitas de fole e as danças, as folias dum sábado à noite ou a luz
diferente dum nascer do sol numa manhã de domingo.
Arranjou um canto num prédio
meio destruído e cheio de solidão. Foi armazenando mantas, um colchão, um
casaco para o frio. E chamou-lhe casa. Deu uma cama ao seu cão e dividiu com
ele um cobertor apanhado numa daquelas noites em que as carrinhas se sucedem
umas às outras, distribuindo comidas e bens. Às vezes apanhava uma flor e
dispunha-a junto de um livro que falava de vontades e de canções.
No dia seguinte, foi para a
rua estacionar carros e pedir moedas. Era uma nova forma de exercer a profissão
de pedinte. Ajudar a arrumar um carro para receber umas moedas em troca. E
profissionalizou-se! Diziam até que esta profissão passaria a ser reconhecida
como tal. Havia até quem falasse em cobrança de impostos.
Digamos que se poderia
considerar um homem! Um homem completo, com um canto, uma casa, um cão! Só
lamentava aquela canção murmurada em segredo de que não se conseguia soltar.
“Quantos sonhos
ligeiros/Pr’a teu segredo/Menino avaro não tenhas medo.”
"Onde fores no teu sonho..." |
À noite, olhando as estrelas
por entre as frinchas do telhado meio desfeito, o homem que desistiu de ser menino
enrolou-se sobre si mesmo aproveitando o calor do amigo que com ele quis
dividir o calor dum corpo sozinho. E adormeceu. Com um sorriso nos olhos e uma
certeza profunda no coração. Adormeceu como um menino que um dia concretizou um
sonho e construiu um futuro – devagar senão bate no outro, vire tudo, à
direita, à direita, agora para trás, está quase. Perfeito, perfeito!
Ao longe, como a
persegui-lo, a melodia da canção que o embalou quase sempre persistia. A vida
quis fazer do menino um homem. Ele é que não deixou, ele não quis.
“Onde fores no teu
sonho/Quero ir contigo/Menino d’oiro sou teu amigo.”
Nota: contem excertos de um poema de José Afonso
Albertina Vaz ©2015,Aveiro,Portugal
Ora aqui temos uma pintura de uma realidade jovem repetida, com pinceladas fortes. Tem ritmo e fluência.
ResponderEliminarEle não quis a vida que a vida tinha para lhe impor...
ResponderEliminarEle não encontrou a vida que queria que a vida lhe desse...
E ficou com a vida que sobrou...
Homens que nunca foram meninos
ResponderEliminarNunca foram filhos da madrugada
Não navegaram de vaga em vaga
Se souberam de dor e mágoa!
Foram pelas praias do mar
Mas, sem nunca encontrarem manhã clara.
De Idalinda Pereira recebemos o seguinte comentário:
ResponderEliminarO sol quando nasce deveria ser para todos! Engane-se quem pense o contrário!.. Neste texto a realidade está nua e crua. Parabéns Albertina por esta descrição tão sincera. Qual floreados.
Elizabeth Seixo enviou-nos o seguinte comentário:
ResponderEliminarMuito bonito e comovente este texto. Muito bem conseguido com o intercalar da canção do Zeca Afonso