domingo, 19 de outubro de 2014

As portas da vida

Fernanda Reigota

Tentava perceber o que se estava a passar. O leito paradisíaco que desde sempre conhecera, transformava-se. O amortecedor de líquido em que costumava saltitar nas horas de atividade esvaziara-se, mas a temperatura, a maciez e a sensação de satisfação continuavam. Apenas o aconchego ficara um pouco mais aconchegado. Pouco a pouco começou a sentir-se verdadeiramente apertado, sendo mesmo expulso do seu leito primordial.
Olhou para aquela porta que tinha sido obrigado a transpor, mas depressa novas
...a porta que tinha sido obrigado a transpor...
sensações prenderam a sua atenção: gritou e assustou-se com o seu próprio grito, respirou e espantou-se com aquele vento ligeiro que ia lá dentro refrescá-lo e depois saía quentinho, abriu os olhos e, por causa daquela luz forte, fechou-os imediatamente, quis sentir o seu corpo e a pele não era a mesma. Uma voz conhecida falava em roupinha. Era melhor descansar, dormir, logo compreenderia o que lhe tinha acontecido.
Tal como aquela criança, naquela maternidade já tinham nascido muitas outras naquele dia. Todas tinham passado por sensações idênticas, todas haviam transposto a porta da vida. Branca, com algumas marcas genéticas, esta porta fora a primeira de muitas outras que pautam todas as vidas.
À volta daquela criança projetava-se e movimentava-se em espiral um feixe de luz em contínuo movimento circulatório: este rasto de luz ia construindo a estrada do seu tempo e o tempo da sua estrada. Inexoravelmente a criança acompanhava esse traçado desde a porta de entrada para a vida.
Aquele feixe de luz encobria muito mais do que aquilo que mostrava. Se olhava para a esquerda perdia, para sempre, a oportunidade de conhecer o que o tempo tinha acabado de levar. Neste espaço de tudo e de nada, a criança não podia falhar a escolha ou a recusa da próxima porta que cruzasse o seu caminho. Recusou a porta da ignorância e
...a porta da curiosidade...
rapidamente teve de decidir: é que, mesmo pegada a ela, vinha a porta da curiosidade. Atravessou-a e, já do lado de dentro, reparou que estava decorada com as conquistas mais significativas que tinham nascido do sonho humano. Intuiu a importância do sonho e do conhecimento para a vivência da estrada do Tempo e do tempo da estrada, enquanto observava as sugestivas pinturas de belos monumentos, sinfonias reveladoras do som cósmico, teatro, dança, globalização, aventura, magia científica, tecnologia, velocidade... Então, sentiu-se a saborear o cheiro inebriante da felicidade possível. Foi assim que enxergou uma mancha que servia de base a toda aquela maravilha: era uma amálgama de poluição que arrastava a vida do planeta Terra para a não sustentabilidade.
Tinha companheiros, mas a maior parte do tempo a viagem era feita em silêncio, embora todos fossem falando, maravilhando-se com as suas próprias palavras. Apesar disso, conseguiu sintonizar-se com algumas outras crianças para brincarem. E um arco-íris de sonho e descobertas desenhava-se sobre as suas estradas.
O tempo da sua estrada, esse continuava a sua caminhada imparável numa marcha lenta, parecia-lhe. Mas a sua estrada do Tempo transformara-se: aos seus olhos parecia-lhe uma gigantesca árvore deitada, sobre o eixo temporal. No tronco, junto à raiz, costumava refugiar-se para observar o mundo possível. Sabia que a sua visão não era absoluta. Pelo contrário, tinha um ângulo limitado e limitações acrescidas pela reduzida superfície iluminada pelo feixe de luz projetado em contínuo movimento circulatório à sua volta. Desta forma, consciencializou que muito conhecimento ficava perdido para sempre. No entanto, era fácil deslocar-se aos espaços a que as portas já transpostas e conquistadas lhe proporcionavam. Outras portas que já franqueara haviam sido a porta da
Portas que se apresentam em espelho
tradição e a porta do inconformismo: haviam-se apresentado em espelho e, por isso, passando uma, a outra era automaticamente transposta. Quando a luz iluminou a porta da tradição, foi atraído pelas suas belas pinturas: festas ancestrais, os rituais das estações do ano, a relação do homem com a Natureza, tudo apresentava cores fortes, aveludadas e saborosas. Essas pinturas até pareciam exalar um perfume a ternura, a humanidade. No entanto, reparou que havia alguns desenhos a tinta negra, de recortes miudinhos. Observou-os e viu cenas de crianças e homens explorados, humilhados, sacrificados, viu mulheres a serem violentadas, espancadas, mortas, viu que o trabalho libertador e participado estava outra vez a dar lugar ao trabalho escravo que nenhuma realização pessoal trazia a quem o executava para não morrer à fome. Quer dizer, para morrer à fome, mas mais lentamente.
O impulso foi procurar refúgio e transpôs-se para a porta do inconformismo.Tomou consciência de que cada espaço era frequentado por outras pessoas com interesses comuns naqueles momentos de partilha. Consciencializou também que o tempo da sua estrada havia acelerado um pouco. Como todas as portas que já penetrara, também aquela era robusta, austera e até um pouco tosca, quando vista do lado de fora. A diferenciação das portas era interior e nesta atraiu-o a longa lista de laureados com o Prémio Nobel da Paz. Foi lendo alguns ao acaso. Ou talvez estivesse a ler aqueles a que não fora associada qualquer reticência:
Comité internacional da Cruz Vermelha, UNICEF, OIT, Amnistia Internacional, Médicos sem Fronteiras, Martin Luther King Jr., Madre Teresa de Calcutá, Tenzin Gyastso (Dalai Lama), Rigoberta Menchú Tum, Nelson Mandela, José Ramos-Horta, Wangari Maathai, Al Gore, Ellen Johson Sirleaf,Leymah Gbowee,

Estupefacto com tanta pessoa que, desde sempre, se manifestou inconformada com a barbárie do ter sobre o ser, estupefacto por tanta mulher e tanto homem terem dedicado a vida a lutar pelos Direitos Humanos, pela irradicação da fome e pela melhoria das condições de saúde e conforto da humanidade, sentiu necessidade de alguma atividade física. Precisava urgentemente de desentorpecer os músculos. Aconchegado por uns raios de sol primaveril, caminhou ao longo de uma vereda que protegia campos onde a vida germinava como promessa renovada em cada Primavera. Ao longe, um campo de malmequeres amarelos atraiu-lhe o olhar e foi a testemunha de uma ideia que lhe surgiu: os homens verdadeiros e os verdadeiros homens nunca vendem nem o génio nem a alma.
Novamente consciencializou que o tempo da sua estrada havia acelerado um pouco mais. Era jovem e novas portas passavam, insinuando-se. Foi atraído pela porta do amor 
Porta do amor e do sexo
e do sexo. Espaço esquisito, aquele: era o primeiro espaço que, transporto, apresentava uma porta rotativa que lançava as pessoas no espaço do sexo ou no espaço do amor e sexo. Tinha de observar e experienciar com muita perspicácia aquela novidade. Foi permanecendo. E a sua primeira admiração foi para o facto de a porta principal ser exteriormente igual às outras, mas pelo lado de dentro ser apenas pintada de branco, como uma folha de papel que se oferecesse a cada pessoa para nela escrever de forma individual, ou como uma tela que pintasse a seu gosto e ao sabor das circunstâncias. Um pequeno letreiro advertia que, uma vez iniciada a escrita ou a pintura, a folha ou a tela plasmar-se-ia no interior da própria pessoa.
Porta da preguiça e da acomodação
Sim, visitaria com frequência aquele espaço, mas tinha de começar a reparar noutras portas, pois o movimento da sua estrada do Tempo estava a tornar-se alucinante e a vida, sabia-o já, tinha de ser continuamente enriquecida. No entanto, foi adiando este propósito e por simples curiosidade e por ver tantas vezes a porta da preguiça e da acomodação insinuar-se-lhe, um dia entrou e foi-se entretendo por ali.
Foi assim que a tecnologia do seu tempo o foi enredando longos dias. Sempre de telemóvel no bolso, nunca perdia de vista o seu iPod ou o seu Tablet. Conectava-se e entrava em órbita durante longas horas, vivendo da verdade da ilusão virtual. Passou a conviver com pessoas que consumiam almofadas químicas para descansarem do stress e aliviarem o tédio que a vida causava. Também transpôs esta porta algumas vezes, mas passou a não se sentir confortável naquele espaço desde que descobriu, na parte interior da porta, lá muito em cima, uma expressão em letras muito pequeninas “Antecâmara de morte prematura”. Sempre que lia aquela expressão procurava a porta do amor e do sexo, entrava na porta rotativa e não se importava onde ia ser disparado. Claro que a porta o largava onde tinha paragem automática: sexo.
Um dia, num restaurante com um grupo de amigos teve um momento de paz como não sentia há muito tempo. O jantar tinha-lhe sabido muito bem e, no momento em que terminava, ouviu uma trivialidade que o fez sorrir. Não podemos viver para comer, temos de comer para viver. Curioso! Ele tinha comido para viver ou vivia, entre outras duas ou três coisas, para comer? O que era certo é que se sentia muito bem e aquela amiga ocasional de grupo o divertia. Ela disparou mais algumas trivialidades em direção de recetores muito bem escolhidos. Ao amigo que se tinha queixado da sua sorte durante todo o jantar, aconselhou-o a preparar-se para o que verdadeiramente queria ser. A outro, que desbobinou a sua vida como um rol de vitórias, lembrou-lhe que na vida também se aprende muito com as derrotas e o sofrimento.
Ele precisava de estar só.
Ele precisava de estar só. Queria saborear aquele momento de felicidade como não vivenciava há muito tempo. Reparou na grande velocidade que ganhara a sua estrada do tempo. A vida não podia ser aquela acomodação que tinha vivido. Despediu-se daqueles amigos com quem jantara e foi ao encontro de outros amigos com quem não contactava há muito, de quem não sabia novidades. Que livros novos teriam publicado os seus autores preferidos? E entrou numa livraria porque precisava de estar só, precisava de começar a reequilibrar as portas da vida, incluindo a porta da leitura.


Fernanda Reigota ©2014,Aveiro,Portugal

4 comentários:

  1. Num percurso que nos conduz através de uma viagem em que, degrau a degrau, se vai transpondo o caminho, como uma linha que se recorta e se encurva, este trabalho é uma enumeração das várias etapas que, queiramos ou não, vamos buscando (entrando, percorrendo e saindo) sem delas podermos distanciar as portas que se abrem ou se fecham de acordo com o desejo, a persistência ou a renuncia. E o caminho não se faz de uma forma estática mas, dinamicamente exploramos o desconhecido e procuramos encontrar sempre novas saídas ou novas portas que nos motivam para continuar a caminhada. Excelente, Fernanda, como sempre!

    ResponderEliminar
  2. Lamento a demora em vir aqui e pela qual peço desculpa. Se não tivesse vindo, perderia uma mensagem bem escrita, muito bem escrita, de alerta. Afinal, de quantos alertas que nos são dados e teimamos em não querer ver. Para além do texto, uma palavra ao aparo da caneta que o desenhou: muita qualidade na construção suave das frases. Com muito prazer aqui virei mais vezes. Obrigado, Fernanda.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada, João Madeira! Será muito bem-vindo a este Blogue Evoluir. Ficamos a aguardar o prazer de outros comentários.

      Eliminar
  3. A estrada da vida percorrida por alguém que a ela não quer ficar alheia descrevendo com minúcia e profundidade os seus pontos vitais, reservando à leitura o poder da ajuda para o reequilíbrio da vida.

    ResponderEliminar

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...